‘Saltburn’: filme traduz conceitos de Bourdieu sobre classes sociais
Econômico, social, cultural e simbólico: para o sociólogo Pierre Bourdieu, capital não é só dinheiro. Aprenda a diferenciar com o filme "Saltburn"
Nas últimas semanas, o filme “Saltburn” (2023), disponível no Prime Video, dominou as redes sociais, sobretudo pelas suas cenas, digamos… escandalosas. O longa é o segundo filme da diretora britânica Emerald Fennell, que logo em sua estreia em Hollywood recebeu cinco indicações ao Oscar por “Bela Vingança” (2020). Desta vez, Fennell leva o espectador a um outro mundo – ainda que muito semelhante ao de seu primeiro filme. Um mundo que, por sinal, é prato cheio para argumentos em uma redação no vestibular, incluindo uma analogia ao sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002).
Acompanhe o texto e entenda como “Saltburn” explica os quatro capitais de Bourdieu – e, de quebra, aprenda a citar o filme na redação.
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Qual a história de “Saltburn”?
No filme, acompanhamos a chegada de Oliver Quick (Barry Keoghan) à Universidade de Oxford, no Reino Unido. O ano é 2006, e Oliver é um jovem tímido, bolsista, e que usa roupas de segunda mão. Suas intenções de fazer amizade e se misturar com os colegas é frustrada logo na primeira noite na universidade, quando percebe que a maioria ali já se conhece de outros carnavais. Em um mundo tão privilegiado, intelectual e tradicional quanto Oxford no início dos anos 2000, todo mundo é primo de alguém ou já passou as férias na casa de campo um do outro.
Esse estranhamento de Oliver em um mundo de milionários dá o tom da história durante todo o filme. As coisas se intensificam quando ele conhece Felix (Jacob Elordi), um rapaz popular, atraente e de uma família aristocrata – seu pai tem até mesmo um título de nobreza. A aproximação com Felix representa para Oliver uma verdadeira queda na toca do coelho, sendo o País das Maravilhas Saltburn, a gigantesca propriedade onde a família de Felix mora. É lá que Oliver é convidado por Felix a passar as férias de verão.
Saltburn (e seus moradores) é curiosa e peculiar. A mansão, que mais parece um castelo, é repleta de obras de arte e itens pertencentes a figuras históricas. No jardim, um gigante labirinto coroa a excentricidade do local. São dezenas de cômodos, todos ricamente decorados, e dezenas de empregados: lacaios que desfazem a mala e mordomos que anunciam o jantar. Este, inclusive, é servido diariamente seguindo as regras de um evento formal, com as mulheres usando vestido e os homens, smoking.
É no contraste entre Oliver e este mundo deslumbrante e sedutor que estão as principais reflexões do filme. Para os moradores de Saltburn (a mãe, o pai, a irmã, e o primo de Felix), tudo aquilo é normal e faz parte da realidade, assim como quem toma um ônibus ou vai ao mercado. Se não fossem as roupas, as músicas e os aparelhos eletrônicos, poderíamos até esquecer que o filme se passa no século 21. Para a família de Felix, a vida é tão boa quanto a de um rei absolutista.
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Capital não é só dinheiro
Essas dinâmicas e relações vividas entre as famílias mais ricas do continente europeu é um dos pontos que levou o renomado autor e teórico das ciências sociais Pierre Bourdieu a ampliar a ideia de “capital” popularizada por Karl Marx. Quando, no século 19, Marx revolucionou as teorias econômicas de David Ricardo e Adam Smith, afirmando que o desenvolvimento e a transformação da sociedade era intrinsecamente ligado à ordem econômica, atribuiu à questão um papel que era, essencialmente, materialista.
Bourdieu, no entanto, após estudar minuciosamente as relações de classe na Europa, concluiu que o “capital” não se resume apenas ao poder econômico ou ao acúmulo de riquezas. O termo, de origem latina, se remete à ideia de “comando”, “cabeça”. Assim, para o sociólogo, o capital poderia ser dividido em outros quatro:
- Capital econômico;
- Capital cultural;
- Capital social;
- Capital simbólico
Cada capital faz mais sentido em um contexto específico. Mas todos eles seriam as ferramentas que usamos nas disputas de poder travadas diariamente na hierarquia social – que o autor chama de campo social. “Como sujeitos, estamos habituados a certas maneiras de agir que incorporamos ao longo da vida e que podem adquirir maior ou menor influência nas disputas pelo poder”, explica Juliano Martoni, professor da Oficina do Estudante, sociólogo de formação e mestre em Educação. “Nesse sentido, é possível acumular diversas formas de poder”.
Quando acumulados, esses poderes facilitam a conquista de outros. Ao longo do filme, nada demonstra que Felix e seu primo Farleigh (Archie Madekwe) são tão inteligentes quanto os outros estudantes de Oxford, como Michael (Ewan Mitchell), que faz contas como uma calculadora humana, e o próprio Oliver. Ainda assim, os dois estudam em uma das melhores universidades do mundo – que também é uma das mais caras.
“Poderíamos dizer que alguém com posses ou riqueza tem maiores possibilidades de estudar e transitar por espaços de reconhecimento e prestígio social. Quais poderes não teriam sido acumulados por uma figura como Elon Musk, por exemplo?”, questiona o Martoni.
Entenda abaixo os quatro capitais defendidos por Bourdieu e veja como eles foram retratados no longa.
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Capital Econômico
O capital econômico talvez seja o mais óbvio de se identificar – seja em “Saltburn” ou na vida real. Ele seria a soma de todos os recursos materiais e a capacidade de produção. Bourdieu traduz este capital como patrimônios acumulados, terras, recursos naturais, entre outros. No filme, o capital econômico da família de Felix é demonstrado da forma mais didática possível. Quantas pessoas podem dizer que possuem um castelo como casa?
Por mais que não fique explícito qual é a origem da riqueza da família, certas falas demonstram que se trata de um dinheiro antigo e geracional. Em certo momento, Felix apresenta um cômodo da casa para Oliver e acena para o fantasma da avó, que supostamente assombra aquele canto. Em outra cena, entra em um cômodo repleto de quadros de parentes falecidos. Provavelmente, Saltburn pertence à família há gerações e gerações.
Isso sem falar no óbvio: nenhum deles trabalha e ainda assim vive uma vida de luxo e excessos; não há nenhuma preocupação com finanças. Ao planejar uma festa de aniversário para Oliver, a mãe de Felix sugere uma coisa pequena, e se justifica dizendo que irá convidar “umas 100 pessoas”. Depois se corrige, e diz 200 porque, afinal, “100 sempre vira 200”. Qualquer sinal de preocupação em dar uma festa para 200 pessoas nem passa pelo olhar da mulher. Dinheiro não é um problema para a família.
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Capital Social
O capital social é outro bem trabalhado no filme. Assim como Oliver percebe em seu primeiro dia de Oxford, a maioria ali já se conhece. Esse “networking” entre os estudantes é, na verdade, resultado de anos frequentando os mesmos espaços. Ambientes estes onde as influências e as trocas simbólicas permitem ganhos de representatividade e reconhecimento, como explica Martoni. “São clubes, escolas, ou até mesmo na própria família, ou seja, são ambientes em que os sujeitos passam a ‘pertencer'”.
Um indivíduo que enriqueceu tardiamente na vida pode ter dificuldades de adquirir um capital social. Por não “pertencer” e frequentar desde cedo os mesmos ambientes que aqueles que agora conhece, não tem os mesmos contatos ou familiaridades.
Logo no início do longa, Oliver está em uma aula com um professor de Literatura e menciona o lugar onde nasceu. O docente, que provavelmente pertence às classes mais altas, afirma nunca ter ouvido falar da cidade. O clima entre os dois parece forçado e constrangedor. Quando Farleigh, o primo de Felix, chega e se apresenta, mesmo estando 20 minutos atrasado, o professor logo reconhece o sobrenome do jovem e descobre que estudou com a sua mãe, anos atrás. Os dois imediatamente se conectam e começam um diálogo caloroso.
Oliver é deixado de lado.
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Capital Cultural
Já o capital cultural de Bourdieu diz respeito ao montante de recursos intelectuais que são adquiridos, na maioria dos casos, por meio da educação. “Diferentemente das relações de status, o capital cultural seria a herança necessária para o acesso a determinadas estruturas sociais”, ressalta Martoni. Na vida real, a necessidade de expressar o capital cultural fala mais em alto em diversas situações: profissionais que usam palavras rebuscadas (ou estrangeiras) para parecerem mais sofisticados; a inferiorização daqueles que preferem assistir um reality show a ler um livro; ou até os títulos como “doutor” que são usados para determinadas formações acadêmicas.
O filme nos serve entrada, prato principal e sobremesa em termos do uso opressor do capital cultural. A família de Felix tem um enorme apreço por cultura. Possivelmente porque, por consequência de não precisarem trabalhar, possuem tempo livre o suficiente para estudar e aprender. Na própria residência há quadros de artistas famosos, como um (“horroroso”, segundo Felix) de Peter Paul Rubens, esculturas de figuras da mitologia grega, e até mesmo a obra completa de Shakespeare em edições de luxo.
A cultura também é presente de forma opressiva nas falas da família. Durante uma refeição, como quem fala sobre o tempo ou o trânsito, a família conversa sobre as obras de Shelly. “Shelly? A irmã da Belinda?”, pergunta uma amiga da mãe que está hospedada na casa. “Percy Bysshe Shelley, o poeta do Romantismo“, responde rispidamente o pai. Para eles, a cultura clássica é tão familiar que se fala dela de forma casual. É óbvio que estão se referindo a Shelly, o poeta inglês do século 19!
Em outra cena, Farleigh, o primo irônico, provoca Oliver em uma brincandeira de “transar, matar ou casar”, apontando para os quadros de Ricardo III, Henrique VII e Henrique VIII que estão na parede. Apesar da seleção peculiar, a brincadeira começa e Farleigh diz que preferiria transar com Ricardo III, porque o monarca era muito inseguro e, por isso, se dedicaria mais durante o sexo. Para além da própria escolha dos reis para a brincadeira (ao invés de celebridades contemporâneas ou pessoas que eles conhecem na vida real), a fala do primo sobre as particularidades de Ricardo III carrega um esnobismo pelo acesso que ele tem às informações – que vão muito além daquelas que se estuda normalmente nos livros de História da escola.
Uma pessoa de outras classes sociais dificilmente reconheceria Ricardo III em um quadro. Muito menos saberia as suas características sentimentais. Isto é capital cultural. No caso do filme, o uso dele para a opressão.
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Capital Simbólico
Por fim, o capital simbólico é para Bourdieu quase que uma junção dos outros três. Martoni explica que é a materialização das relações previamente determinadas pela visibilidade social herdada ou conquistada. “São ocupações de espaços, maneiras de se comportar que lhes permite transitar com facilidade, ou na falta dele, com dificuldades, entre os círculos sociais cristalizados através de prestígio e notabilidade”.
Logo em sua primeira manhã em Saltburn, em uma cena verdadeiramente constrangedora, Oliver senta-se à mesa com a família e pede um café da manhã americano para o mordomo, acreditando que aquela seja a maneira correta de agir. Todos, incluindo o próprio funcionário, olham para Oliver com um semblante envergonhado e ao mesmo tempo julgador. A mãe interrompe o silêncio e diz que o café da manhã está servido ao lado, no aparador.
A falta de conhecimento de Oliver acerca das regras de etiqueta das famílias aristocratas é algo que pode ser compreendido pela maioria esmagadora da população do planeta. Mas naquele contexto, naquela mesa, ele era o único que não sabia que, no café da manhã, a comida é servida em um buffet. Ninguém lhe deu um manual de instruções: apenas se esperava que ele soubesse.
Este tipo de detalhe é um exemplo de capital simbólico. Certas maneiras de agir, falar, se vestir, comer, lugares que se frequenta, sobrenomes, protocolos, títulos… tudo pode ser entendido como um prestígio àquele indivíduo.
Em outra cena, basta Felix chegar perto de uma moça para ela largar o outro rapaz com quem estava conversando e sair de mãos dadas com Felix. “Qual é? Eu estava cantando ela há uma hora”, lamenta o rapaz abandonado. “Quer uma punheta? Arrume um título e um castelo para você”, responde um dos amigos quando Felix e a moça já estão longe. Este é o capital simbólico de Felix: ele é bonito, rico, de família aristocrata, é sempre convidado para as festas, e usa roupas de grife. Todos querem ser, namorar ou estar com dele.
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