Durante a tarde de quarta-feira (26), militares das Forças Armadas da Bolívia realizaram uma tentativa de golpe de Estado na capital do país, La Paz. Liderados pelo comandante do Exército Boliviano, Juan José Zúñiga, grupos armados cercaram o palácio presidencial e, com a ajuda de um veículo blindado, chegaram a invadir parte do palácio em uma tentativa de depôr o presidente Luis Arce. O cerco durou poucas horas: em meio à mobilização, o presidente denunciou a tentativa à população boliviana e empossou novos comandantes nas Forças Armadas. Zúñiga, preso ainda na noite de ontem, acusa o chefe da República de ter encomendado a ação militar para aumentar a sua popularidade, uma vez que busca a reeleição em 2025.
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“Denunciamos mobilizações irregulares de algumas unidades do Exército Boliviano. A democracia deve ser respeitada” escreveu o presidente nas redes sociais ao anunciar a substituição da cúpula militar, ao saber do início das mobilizações na praça Murillo. Poucas horas depois, gravou um vídeo pedindo para que a população civil se organizasse contra o golpe de Estado e “a favor da democracia”.
Desde o começo da semana, o comandante Zúñiga já havia demonstrado comportamentos e falas contrárias ao governo democrático. Na segunda-feira, disse que não permitira que o ex-presidente Evo Morales se candidatasse à reeleição. Chegou a advertir que “se fosse o caso”, não permitiria que Morales “pisasse na Constituição, que desobedece ao mandato do povo”, acrescentando ainda que, nesse sentido, as Forças Armadas deveriam ser “o braço armado do povo, o braço armado da pátria”.
Após as falas consideradas golpistas, o ex-comandante foi destituído do cargo por Arce. Zúñiga, por sua vez, ignorou a ordem presidencial e, na quarta-feira (26), após assistir a um evento oficial, liderou a ocupação e invasão da praça presidencial. “Hoje, o Exército está mobilizado, em emergência, aquartelado… atendemos ao clamor do povo. O povo pede basta de saques, basta de indignações […] Aqui estão as Forças Armadas pelo seu povo”, chegou a afirmar.
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O ex-comandante também pedia a libertação dos presos políticos, incluindo a ex-presidente interina Jeanine Añez e o governador da província de Santa Cruz, Luis Fernanda Camacho, ambos acusados de participar do complô que levou à acusação de que Evo Morales havia fraudado o processo eleitoral nas eleições de 2019.
Na visão da oposição, Arce nada mais seria do que uma continuação do governo de mais dez anos de Morales, que renunciou a vitória após as acusações de fraude. Arce, no entanto, há tempos não é mais visto como um aliado do ex-presidente e não estaria interessado em seu possível retorno em 2025. Neste texto, o GUIA DO ESTUDANTE te explica o contexto em que Luis Arce chegou ao poder e como ele foi de aliado a opositor de Evo Morales.
Antes de Arce, a renúncia de Morales
Antes de saber como Luis Arce chegou ao poder, é preciso entender como Evo Morales quase voltou para o seu terceiro mandato – o ex-presidente ficou no poder entre 2006 e 2019. Durante seu mandato, Morales focou em grandes reformas econômicas e sociais que, com a ajuda do “boom das commodities”, conseguiu diminuir drasticamente a extrema pobreza no país. Durante o seu primeiro mandato, promulgou a 16ª Constituição do país que, entre outras mudanças nas estruturas políticas, passou a permitir dois mandatos consecutivos de cinco anos cada.
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Em 2016, no entanto, tentou emplacar um referendo que permitiria reeleições sem um número limite. A proposta teve resposta negativa pela população, mas, em uma manobra com Tribunal Constitucional em 2017, o governante conseguiu autorização para concorrer novamente em 2019. Nas eleições, disputou uma corrida acirrada com Carlos Mesa, disparando como os dois candidatos prováveis a competir em um segundo turno.
Na apuração de votos, resultados preliminares mostravam uma diferença apertada entre os dois candidatos, com poucos pontos de diferença. A contagem, no entanto, foi interrompida abruptamente, retomando somente no dia seguinte. Quando continuada, o ex-presidente passou a apresentar uma ampla vantagem contra o concorrente, já indicando vitória no primeiro turno. A mudança levantou suspeitas de manipulação eleitoral e Morales foi acusado de utilizar o Tribunal Superior Eleitoral a seu favor.
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A interrupção da apuração e a mudança drástica nos resultados subsequentes resultaram em uma onda de protestos em todo o país – alguns contra, mas outros defendendo a integridade do ex-presidente. A Organização dos Estados Americanos (OEA) entrou em cena e, ao conduzir uma auditoria do processo eleitoral, afirmou ter encontrado “irregularidades graves” que comprometeram a integridade da eleição, incluindo falta de transparência, manipulação de dados e alteração nas contagens.
Sob forte pressão nacional e internacional, Evo Morales anunciou sua renúncia em 10 de novembro de 2019, buscando asilo no México e posteriormente na Argentina. Assumiu o cargo como presidente interina a senadora da oposição Jeanine Áñez, que convocou novas eleições para maio 2020. Liderando um país polarizado e afundado em crises, foi acusada de abafar manifestações pró-Morales.
A eleição que aconteceria em maio foi adiada por conta da pandemia da Covid-19, ocorrendo somente em outubro. E aqui, finalmente, chegamos a Luis Arce. Ele, que foi ministro da Economia e Finanças durante o governo de Morales, foi escolhido como o candidato do Movimento ao Socialismo (MAS), o partido de Evo Morales.
Evo Morales 2.0?
Ainda durante a campanha eleitoral, Luis Arce demonstrou semelhanças com a maneira de governar de Morales. O candidato havia trabalhado com o ex-presidente durante onze anos, em uma estreita relação de confiança mútua. Os dois compartilhavam a mesma visão política e não demorou para Arce ser apontado como uma “continuação” do governo de Morales.
Luis Arce venceu logo no primeiro turno, em 8 de novembro de 2020, com 55% dos votos. O retorno do MAS ao poder foi visto pelos aliados como um retorno à democracia, enquanto a oposição temia uma versão travestida da “ditadura Morales”. Fato é que logo no início do mandato, Arce teve que enfrentar os efeitos da pandemia na economia boliviana. Descreveu a recessão do país como a pior dos últimos 40 anos.
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Ao longo dos meses, procurou amenizar os problemas mais graves a partir de programas de revitalização e restauração da confiança de investidores internacionais. Alinhado à filosofia do MAS, deu sequência à política de nacionalização de setores estratégicos, promovendo investimentos em infraestrutura e a ampliação de programas sociais de incentivo. Pode-se dizer que houve avanços na diminuição da pobreza, mas a Bolívia que governa hoje não é a mesma de quando foi o ministro da Economia considerado o pai do “milagre econômico”.
A escassez de dólares e a queda no nível de produções de gás natural iniciaram uma espiral de dívidas no país, que passou a gastar muito e ganhar pouco. De centro exportador energético, passou a ser um importador de, segundo o próprio presidente, 56% da gasolina e 86% do diesel que consome. Quem sentiu a diferença foi a própria população, que viu no preço de produtos como arroz e tomate um aumento drástico.
De aliado a opositor
De 2020 a 2024, Luis Arce foi gradualmente perdendo o seu favoritismo. Aqueles que eram contrários ao presidente intensificaram sua oposição, enquanto os que defendiam o governante passaram a questionar algumas de suas medidas. Uma das principais mudanças para a composição desse cenário foi a constante negação da crise econômica. Passado os piores momentos da pandemia da covid-19, o presidente passou a anunciar que o país estava livre dos efeitos da crise.
“Somos a economia mais estável; o sistema financeiro está totalmente estável, os indicadores de solvência financeira e liquidez que o sistema financeiro tem são bons”, chegou a afirmar em 2023. Na contramão, pesquisas conduzidas pelo jornal Página Siete afirmavam que essa não era uma verdade para 80% da população, que acreditava que a Bolívia ainda enfrentava uma “forte crise econômica” (44%) ou uma “crise moderadora” (31%).
Além disso, acusações de corrupção dentro do próprio governo começaram a pipocar. O presidente foi acusado de perseguição política por investigar os supostos envolvidos na “derrubada” de Evo Morales durante as eleições de 2019. Este, por sua vez, após passar um ano exilado na Argentina, voltou à Bolívia em 2020, e não poupou críticas ao seu “herdeiro político”.
A criação de um antagonismo entre Arce e Morales fundou uma espécie de fenda entre os alinhados à esquerda, que passaram a discordar sobre a escolha de um candidato para representar nas eleições de 2025. Na realidade, as pesquisas indicam que há entre a população tanto uma frustração com Arce quanto um receio pelos erros do passado de Morales, e há expectativa pelo surgimento de um novo nome para a presidência.
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