A amazonense Isabelle Nogueira, 32, movimentou as redes sociais durante o BBB24. Para além de torcidas e favoritismos, a presença da influenciadora digital na casa mais vigiada do Brasil levantou temas envolvendo a cultura popular do Amazonas – tão representativa da identidade nacional, mas, por vezes, desconhecida por outras regiões do país. Em Manaus, sua cidade natal, a “sister” é famosa por ser cunhã-poranga do Boi Garantido, personagem folclórico de uma importante festa amazonense, o Festival de Parintins.
A festa é uma verdadeira tradição do estado, e sua grandiosidade pode surpreender os brasileiros que nunca ouviram falar dela. Para se ter uma noção, anualmente cerca de 35 mil pessoas se reúnem no Centro Cultural de Parintins, mais conhecido como Bumbódromo, para assistir às apresentações. A ilha de Parintins, que sedia o evento, chega a receber mais de 100 mil turistas durante os três dias de festa, dobrando sua população. Em 2023, movimentou R$ 146,6 milhões na economia local, segundo o governo do estado.
Num primeiro momento, a festa se assemelha aos desfiles das escolas de samba que acontecem no Rio de Janeiro e em São Paulo durante o carnaval. No entanto, difere em origem e significado que, juntos, definem a própria estrutura do festival: tudo gira em torno da disputa entre o Boi Caprichoso e o Boi Garantido.
Entenda a importância cultural da festa e como ela se relaciona às tradições da região.
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Lenda local é encenada
Que o Brasil é cheio de personagens importantes para a cultura nacional, você já sabe. Saci Pererê, Iara, Mula-sem-cabeça, Curupira… São diversos os nomes que, em uma mistura de diferentes culturas africanas e indígenas, permeiam o imaginário do país e dão origens a celebrações e festas. É o caso das festas de Bumba meu boi, um ciclo de festivais que celebra a cultura popular por meio de apresentações teatrais, de música e dança. O Boi-bumbá (uma variação do Bumba meu boi) é o mote por trás do Festival de Parintins.
A festividade tem origem em uma popular lenda do Norte e Nordeste do país que, segundo a crença, aconteceu durante os tempos coloniais: o Auto do Boi. A história começa com uma vontade de Mãe Catirina, uma mulher escravizada grávida que suplicava incansavelmente por língua de boi. Para satisfazer o “desejo de grávida” da esposa, Pai Francisco, também escravizado, sacrifica um boi de seu senhor para retirar a língua do animal.
O que ele não imaginava era que o ato poderia custar sua própria vida: o boi era o favorito de seu patrão, que após descobrir o crime, decide matar Pai Francisco.
Uma busca implacável pelo casal começa. E o que salva a pele dos dois é o trabalho de pajés locais que ressuscitam o boi favorito do patrão. O senhor, satisfeito por ter seu bovino de volta, poupa o casal e decide dar uma festança para celebrar o ato – o urro do boi ressuscitado põe em festa toda a fazenda.
É a narrativa do Auto do Boi que é celebrada durante o Festival de Parintins. Antes pelas ruas da cidade, e desde 1985 na arena do Bumbódromo, centenas de atores e dançarinos se juntam para encenar a lenda a partir de apresentações teatrais e musicais. Há licenças poéticas e liberdades criativas para sempre deixar o público encantado pelas apresentações – recheadas de celebrações ao Amazonas –, mas a história é sempre a mesma.
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A importância do animal no Auto do Boi é reflexo da própria mentalidade da época. O gado era uma das principais fontes da economia nacional. Onipresente nas fazendas, era símbolo de riqueza para os patrões, e fazia parte da rotina dos escravizados. Para algumas religiões e crenças, as características físicas do animal lhe proporcionam ares divinos sendo um sinônimo para força, virilidade, reprodução e riqueza. Na mitologia grega, Zeus se transformou no animal para seduzir a princesa Europa.
Toda a estrutura do Auto do Boi pega carona nos teatros medievais: encontramos personagens simples, mas com características marcantes, doses de misticismo, humor, e uma certa moralidade. São, afinal, narrativas populares. Um clássico da literatura que pode ajudar a compreender este formato de história é o “Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna. Mas, claro, se tratando de uma lenda, há diferente versões em diferentes regiões do país. Em alguns locais, Catirina e Francisco não são escravizados, mas sim, trabalhadores rurais. Em outras, não são pajés, mas curandeiros que ajudam o casal.
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Dois bois, dois times: Caprichoso e Garantido
No início do texto, afirmamos que o Festival de Parintins gira em torno de uma rivalidade ancestral: a disputa entre os bois Caprichoso e Garantido. Assim como pontuamos que a festa é uma variação das festividades de “Bumba meu boi”. Em linhas muito gerais, a principal diferença entre os dois tipos de festividades é que enquanto as festas de “Bumba meu boi” são principalmente uma comemoração, as de “Boi-bumbá” tem um caráter mais competitivo.
Nas festas de “Bumba meu boi” os grupos encenam a história do Auto do Boi sem nenhum senso de competição. As festividades acontecem durante todo o mês de julho, de maneira semelhante à Festa Junina na região Sudeste. São dezenas de quadrilhas, mas não há um grupo de jurados para dizer qual foi a melhor. No Boi-bumbá é exatamente o contrário. Os espetáculos são concentrados em um único evento, durante três dias de festas, usualmente entre o final de junho e início de julho. Há um corpo de jurados e, no final, é declarado um vencedor.
São dezenas de quesitos a serem julgados – mais precisamente, vinte e um. São eles: apresentador; levantador de toadas; batucada e marujada; ritual indígena; porta-estandarte; Amo do Boi; Sinhazinha da Fazenda; Rainha do Folclore; Cunhã-Poranga; Boi Bumbá; Toada; Pajé; povos indígenas; tuxauas; figura típica regional; alegoria; lenda amazônica; vaqueirada; galera (a plateia presente na arena); coreografia; e organização do conjunto folclórico.
São categorias, tais quais as do Carnaval paulista e carioca, onde se dá nota desde à comissão de frente e às alegorias até ao mestre-sala e porta-bandeira. Mas, diferentemente das dezenas de escolas de samba do Carnaval, no Festival de Parintins, há somente dois competidores: o Boi Caprichoso e o Boi Garantido. O primeiro é representado pela cor azul, o segundo, vermelha.
Ambos os grupos (ou simplesmente “bois”) datam do início do século 20. Boi Caprichoso, também conhecido como Touro Negro, foi fundado pelas famílias Cid e Gonzaga, de origens nordestinas. Já o Garantido nasceu da promessa de um homem que, se se curasse de uma grave doença, faria um boi para celebrar junto à comunidade. A apresentação de cada boi dura cerca de 2h30 na arena, e até mesmo o entusiasmo da plateia (a “galera”) é contabilizado.
Nos dias de festival, a rivalidade é tanta que não usa roupas ou objetos do boi adversário. Grandes marcas de embalagens vermelhas, como Coca-Cola e Brahma, lançam edições temporárias na cor azul para não perder os clientes do Boi Caprichoso. Nem mesmo se pronuncia o nome do concorrente – tratado apenas como o “contrário”.
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BBB juntou as torcidas
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A sister do BBB 24 tem causado na internet. Não só pelas danças e adereços que celebram a cultura indígena, mas também pela sua torcida aqui fora. Ela é a quarta amazonense a participar do programa, desde a primeira edição. Diferentemente da maioria dos brothers, a jovem entrou no programa por meio de uma votação popular prévia. Foi a mulher mais votada para entrar na casa, com mais de dois milhões de votos. Ela é cunhã-poranga do Garantido. Isto é, participa dos festivais pelo grupo vermelho na pele da bela guerreira indígena.
No entanto, o reality show de maior sucesso do mundo conseguiu um feito histórico. Para salvar a sister do “paredão”, as torcidas dos dois bois se juntaram para levantar votos para Isabelle. Por meio de um post nas redes sociais, o perfil oficial do Boi Caprichoso no Instagram divulgou uma campanha de votos. Com mais de 200 mil curtidas, a legenda deixa a rivalidade de lado em nome da representatividade: “pelo nosso Amazonas, pela nossa cultura, o Boi Caprichoso expressa seu apoio à Isabelle Nogueira.”
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