Caderno de redações: Enem 2014
PROTEÇÃO À CRIANÇA E LIBERDADE PUBLICITÁRIA
A proposta de redação da prova de 2014 do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) desafiou muitos secundaristas a refletir pela primeira vez sobre um tema que foi considerado uma surpresa: a recomendação de proibição de publicidade dirigida a crianças no país, adotada no mesmo ano. Ao contrário do tema da prova de 2013, a chamada Lei Seca, essa proibição não mereceu tanta repercussão, mas um mapa ajudou o estudante a perceber que essa questão já foi enfrentada em diferentes países. Veja a proposta e algumas redações bem avaliadas. As análises são do professor Alan Nicoliche
PROPOSTA DE REDAÇÃO
A partir da leitura dos textos motivadores seguintes e com base nos conhecimentos construídos ao longo de sua formação, redija texto dissertativo-argumentativo em norma-padrão da língua portuguesa sobre o tema Publicidade infantil em questão no Brasil, apresentando proposta de intervenção, que respeite os direitos humanos. Selecione, organize e relacione, de forma coerente e coesa, argumentos e fatos para defesa de seu ponto de vista.
TEXTO I
A aprovação, em abril de 2014, de uma resolução que considera abusiva a publicidade infantil, emitida pelo Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), deu início a um verdadeiro cabo de guerra envolvendo ONGs de defesa dos direitos das crianças e setores interessados na continuidade das propagandas dirigidas a esse público.
Elogiada por pais, ativistas e entidades, a resolução estabelece como abusiva toda propaganda dirigida à criança que tem “a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço” e que utilize aspectos como desenhos animados, bonecos, linguagem infantil, trilhas sonoras com temas infantis, oferta de prêmios, brindes ou artigos colecionáveis que tenham apelo às crianças.
Ainda há dúvidas, porém, sobre como será a aplicação prática da resolução. E associações de anunciantes, emissoras, revistas e de empresas de licenciamento e fabricantes de produtos infantis criticam a medida e dizem não reconhecer a legitimidade constitucional do Conanda para legislar sobre publicidade e para impor a resolução tanto às famílias quanto ao mercado publicitário. Além disso, defendem que a autorregulamentação pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) já seria uma forma de controlar e evitar abusos.
IDOETA, P. A.; BARBA, M. D. A Publicidade Infantil Deve Ser Proibida? Disponível em: https://www.bbc.co.uk. Acesso em: 23 maio 2014. Adaptado.
TEXTO II
A PUBLICIDADE PARA CRIANÇAS NO MUNDO
Disponível em: www1.folha.uol.com.br. Acesso em: 24 jun. 2014. Adaptado.
TEXTO III
Precisamos preparar a criança, desde pequena, para receber as informações do mundo exterior, para compreender o que está por trás da divulgação de produtos. Só assim ela se tornará o consumidor do futuro, aquele capaz de saber o que, como e por que comprar, ciente de suas reais necessidades e consciente de suas responsabilidades consigo mesma e com o mundo.
SILVA, A. M. D.; VASCONCELOS, L. R. A Criança e o Marketing: Informações Essenciais para Proteger as Crianças dos Apelos do Marketing Infantil. São Paulo: Summus, 2012. Adaptado.
INSTRUÇÕES
1. O rascunho da redação deve ser feito no espaço apropriado.
2. O texto definitivo deve ser escrito à tinta, na folha própria, em até 30 linhas.
3. A redação que apresentar cópia dos textos da Proposta de Redação ou do Caderno de Questões terá o número de linhas copiadas desconsiderado para efeito de correção.
RECEBERÁ NOTA ZERO, EM QUALQUER DAS SITUAÇÕES EXPRESSAS A SEGUIR, A REDAÇÃO QUE:
• tiver até 7 (sete) linhas escritas, sendo considerada insuficiente.
• fugir ao tema ou que não atender ao tipo dissertativo-argumentativo.
• apresentar proposta de intervenção que desrespeite os direitos humanos.
• apresentar parte do texto deliberadamente desconectada com o tema proposto.
ANÁLISE DA PROPOSTA
A HORA DE OPINAR
O propósito da redação do Enem é avaliar os candidatos não apenas nos aspectos técnicos – gramática e estrutura textual –, mas principalmente no aspecto argumentativo, na capacidade de refletir sobre uma situação-problema e propor intervenções razoáveis. A proposta de 2014 trouxe os elementos essenciais para que o redator pudesse mostrar suas capacidades discursivas e expor suas ideias como cidadão.
O tema proposto não era novidade – a regulamentação da publicidade voltada ao público infantil é pauta de discussão há muito tempo, tanto no Brasil, quanto em diversas outras nações. Mas ainda que não fosse algo novo, o assunto não vinha ganhando muito destaque pela mídia, o que acabou surpreendendo aqueles que realizaram a prova. Dessa forma, os textos de apoio foram fundamentais para ambientar os candidatos e ajudá-los a escolher um direcionamento em suas composições.
Os três textos-base apresentaram a questão da publicidade infantil e sua regulamentação. No primeiro, é apresentado o impasse no caso nacional, resultado da decisão do Conanda de considerar a publicidade direcionada às crianças como abusiva. No segundo texto, um mapa mostra como o assunto é tratado em diferentes países. O último texto traz uma abordagem mais pedagógica, tratando da necessidade de orientar os jovens quanto à publicidade e seu poder persuasivo. Obviamente, dada a proposta, o maior diálogo da redação deveria ser realizado com o texto I, servindo os demais como base para a linha argumentativa.
Afinal, proibir, liberar ou moderar? Qualquer uma das possibilidades poderia ser abordada na redação. Mais importante que a opinião do candidato era sua capacidade de argumentar. Aqueles que optassem pela proibição deveriam ter em mente que, para defender essa colocação, mais radical, teriam não apenas de concordar com a proposta do Conanda, mas apresentar informações que sustentassem a necessidade de proibir os anúncios. Para quem defendesse a liberação, seria necessário convencer o leitor de que a publicidade não é maléfica, ou que as agências e anunciantes têm capacidade e responsabilidade para se autorregularem. A saída moderada deveria explicar como se daria a regulação: horários e produtos pré-definidos, mensagens de advertência, formatos distintos em diferentes mídias etc.
Enfim, a proposta de Redação do Enem 2014 conseguiu cumprir o objetivo de apresentar um tema no qual os jovens cidadãos pudessem dar sua opinião e apresentar propostas de intervenção reais. O candidato, por mais que não estivesse familiarizado com o tema, teve subsídio para escrever e trabalhar sua argumentação.
REDAÇÃO 1
Sem título*
Desde o início da expansão da rede dos meios de comunicação, em especial o rádio e a televisão, a mídia publicitária tem veiculado propagandas destinadas ao público infantil, mesmo que os produtos ou serviços mencionados não sejam destinados a este. Na década de 1970, por exemplo, era transmitida no rádio a propaganda de um banco utilizando personagens folclóricos, chamando a atenção das crianças que, assim, persuadiam os pais a consumir.
É sabido que, no período da infância, o ser humano ainda não desenvolveu claramente seu senso crítico, e assim é facilmente influenciado por personagens de desenhos animados, filmes, gibis, ou simplesmente pela combinação de sons e cores de que a publicidade dispõe. Os adolescentes também são alvo, numa fase em que o consumo poder ser sinônimo de autoafirmação. Ciente deste fato, a mídia cria os mais diversos produtos, fazendo uso desses atributos, como brindes em lanches, produtos de higiene com imagens de personagens e até mesmo utilizando atores e modelos mirins nos comerciais.
Muitos pais têm então se queixado do comportamento consumista de seus filhos, apelando para organizações de defesa dos direitos da criança e do adolescente.
Em abril de 2014, foi aprovada uma resolução que julga abusiva essa publicidade infantil, gerando conflito entre as empresas, organizações publicitárias e os defensores dos direitos deste público-alvo. Entretanto, tal resolução configura um importante passo dado pelo Brasil com relação ao marketing infantil. Alguns países cujo índice de escolaridade é maior que o brasileiro já possuem legislação que limita os conteúdos e horários de exibição dos comerciais destinados às crianças. Outros, como a Noruega, proibiram completamente qualquer publicidade infantil.
A legislação brasileira necessita, portanto, continuar a romper com as barreiras impostas pela indústria publicitária, a fim de garantir que o público supracitado não seja alvo de interesses comerciais por sua inocência e fácil persuasão. No âmbito educacional, as escolas devem auxiliar na formação de cidadãos com discernimento e capacidade crítica. Desta forma, é importante que sejam ensinados e discutidos nas salas de aula os conceitos de cidadania, consumismo, publicidade e etc., adequando-os a cada faixa etária.
*Redação de Gabriela Almeida Costa, de Salvador (BA), que recebeu nota 1000 na prova do Enem 2014. Gabriela foi aprovada para ingresso no curso de Geografia na Universidade Federal da Bahia.
ANÁLISE
QUATRO REQUISITOS COMPLETOS
A redação do Enem deve seguir quatro premissas básicas: utilizar a estrutura clássica do texto dissertativo, com introdução, desenvolvimento e conclusão; manter-se no tema proposto – quase sempre amparando-se nos textos de apoio –; cometer o mínimo possível de desvios de linguagem; e apresentar e desenvolver uma proposta de intervenção passível de ser acatada. É o que o texto desta candidata faz.
Bebendo na fonte dos textos de apoio, a candidata contextualiza o leitor enquanto desenvolve seu raciocínio. A construção acontece de maneira tão clara e progressiva, que, ainda que não traga muitas novidades em sua argumentação, cumpre bem a proposta. Vale a pena ressaltar a maneira como as informações dos textos- -base são aproveitadas no texto, inclusive as do gráfico: não se trata de um remendo de informações, antes disso, elas são bem costuradas – servindo de base para os argumentos apresentados.
Quanto à linguagem, os desvios gramaticais e coesivos são poucos, mantendo a produção dentro da margem de erros aceitáveis pela grade de correção. Vale lembrar que o Enem trabalha com faixas de notas, ou seja, a nota máxima pode ser alcançada ainda que a redação apresente alguns deslizes quanto à norma e à construção textual.
Por fim, uma proposta de intervenção totalmente plausível e bem desenvolvida fecha os requisitos do texto. Aqui um ponto importante: a sugestão não se restringe a um único campo. É reconhecida a necessidade de haver uma legislação ativa quanto à publicidade e ainda se propõe uma ação dentro das escolas – esta última ideia, principalmente, muito bem desenvolvida.
Ressalvando-se a ausência de título, esta dissertação é um exemplo de como uma redação não precisa ser mirabolante para alcançar uma boa nota no exame. Candidatos que fazem uma boa leitura da proposta, e que conseguem desenvolver suas ideias de forma coerente, têm grande chance de emplacar um bom resultado.
REDAÇÃO 2
Publicidade infantil: perigoso artifício*
Uma criança imitando os sons emitidos por porcos já foi atitude considerada como falta de educação. No entanto, após a popularização do programa infantil “Peppa Pig”, essa passou a ser uma cena comum no Brasil. O desenho animado sobre uma família de porcos falantes não apenas mudou o comportamento dos pequenos como também aumentou o lucro de uma série de marcas que se utilizaram do encantamento infantil para impulsionar a venda de produtos relacionados ao tema. Peppa é apenas mais um exemplo do poder que a publicidade exerce sobre as crianças.
Os nazistas já conheciam os efeitos de uma boa publicidade: são inúmeros os casos de pais delatados pelos próprios filhos – o que mostra a facilidade com que as crianças são influenciadas. Essa vulnerabilidade é maior até os sete anos de idade, quando a personalidade ainda não está formada. Muitas redes de lanchonetes, por exemplo, valem-se disso para persuadir seus jovens clientes: seus produtos vêm acompanhados por brindes e brinquedos. Assim, muitas vezes a criança acaba se alimentando de maneira inadequada na ânsia de ganhar um brinquedo.
A publicidade interfere no julgamento das crianças. No entanto, censurar todas as propagandas não é a solução. É preciso, sim, que haja uma regulamentação para evitar a apelação abusiva – tarefa destinada aos órgãos responsáveis. No caso da alimentação, a questão é especialmente grave, uma vez que pesquisas mostram que os hábitos alimentares mantidos até os dez anos de idade são cruciais para definir o estilo de vida que o indivíduo terá quando adulto. Uma boa solução, nesse caso, seria criar propagandas enaltecendo o consumo de frutas, verduras e legumes. Os próprios programas infantis poderiam contribuir nesse sentido, apresentando personagens com hábitos saudáveis. Assim, os pequenos iriam tentar imitar os bons comportamentos.
Contudo, nenhum controle publicitário ou bom exemplo sob a forma de um desenho animado é suficiente sem a participação ativa da família. É essencial ensinar as crianças a diferenciar bons produtos de meros golpes publicitários. Portanto, em se tratando de propaganda infantil, assim como em tantos outros casos, a educação vinda de casa é a melhor solução.
*Redação de Larissa Freisleben, que recebeu nota 1000 na prova do Enem 2014. Larissa ingressou em Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
ANÁLISE
SAINDO DO QUADRADO
As melhores redações são, sem dúvida, aquelas cujos argumentos e exemplos fogem do lugar-comum. Aqueles que almejam as melhores notas, seja no Enem ou em exames vestibulares, devem surpreender a banca examinadora, demonstrando um bom repertório cultural e capacidade de articular informações de diversas fontes dentro de um contexto coerente. Este texto, que ficou famoso na mídia, traz alguns desses traços.
Quando dizemos que o candidato deve ousar na escolha do repertório que utilizará em seu texto, isso não quer dizer que ele deva demonstrar profunda erudição, citar grandes autores ou mostrar-se um ser multimídia. De nada vale qualquer informação no texto se estiver descontextualizada. A ousadia deve residir na falta de medo de trabalhar exemplos menos convencionais e na capacidade argumentativa para extrapolar essas informações. Fazer uma boa intertextualidade, perceber conceitos filosóficos, sociológicos ou políticos em produções midiáticas, intercambiar visões artísticas clássicas com outras mais alternativas, ou seja, perceber as relações evidentes ou subjetivas presentes no mundo e amarrá-las em um texto são as características de um bom escritor.
A redação de Larissa Freisleben certamente chamou a atenção de todos pela citação do desenho animado Peppa Pig; no entanto, outras referências ao longo do texto deram consistência à tese apresentada na introdução, como as crianças que denunciavam os pais durante o nazismo, o caso das lanchonetes e os hábitos alimentares infantis, que se complementam. Claramente, nenhum elemento está ali apenas para fazer graça ou, como popularmente se diz, “encher linguiça”. Os programas infantis, por exemplo, são retomados na proposta de intervenção.
Se na argumentação e na escolha dos exemplos a ação da candidata foi acertada, na estruturação não foi diferente. A introdução utiliza a animação da porquinha para ilustrar o poder da mídia e da publicidade. Na sequência, os demais exemplos demonstram como a propaganda interfere no comportamento das crianças. No terceiro parágrafo, a dissertação trabalha especificamente o caso da veiculação da publicidade infantil, cerne da proposta do Enem. Ali a redatora demonstra sua opinião, favorável a uma regulamentação responsável, diferente de uma proibição total. Também nesse ponto é iniciada a proposta de intervenção, já que há a sugestão de inclusão de hábitos saudáveis nas propagandas e nas personagens dos desenhos animados. Por fim, a redação é concluída com mais propostas interventivas, dessa vez colocando a família como responsável por guiar o jovem no discernimento da publicidade.
Dessa forma, a candidata conseguiu um texto que cumpriu todas as exigências da proposta e agradou os avaliadores. Uma quantidade medida de ousadia fez com que o texto se destacasse e atingisse a nota máxima no exame. Um exemplo a ser seguido!