Quando foi publicado, em 1995, o livro O Ócio Criativo, de Domenico de Masi, tornou-se rapidamente um fenômeno internacional. Em sua análise, Masi acreditava que na globalização a economia poderia ir muito melhor caso as pessoas pudessem organizar sua vida equilibrando três elementos: trabalho, estudo e lazer.
Pois é, passaram-se quase três décadas desde então e as transformações do mercado de trabalho só reforçam uma ideia que já circulava há muito tempo. O trabalho excessivo pode até gerar crescimento econômico em alguns casos, mas ele também provoca consequências nefastas na vida de cada pessoa e para a sociedade como um todo. Sobretudo se for considerado que somente uma ínfima parcela da população global consegue efetivamente desfrutar plenamente das riquezas geradas por esse trabalho.
Onde fica o tempo para o estudo de que falou Domenico de Masi? E o lazer? Afinal, quem tem direito ao ócio?
O ócio na História
Em importantes sociedades formadas ao longo da História, a possibilidade de que determinada parcela da população pudesse desfrutar de tempo livre para se dedicar a atividades que não fossem consideradas como “trabalho” dependeu precisamente das variadas atividades produtivas que os outros setores dessa mesma sociedade se viam forçadas a desempenhar. Trocando em miúdos: para uma pessoa ter acesso a tempo livre, ao ócio, alguém sempre precisou estar trabalhando por ela.
Tomando a pólis de Atenas na Grécia Antiga como exemplo, o tempo ocioso era valorizado como uma condição necessária para que o indivíduo desenvolvesse valores e habilidades racionais tidos como importantes àquela sociedade (como atividades relacionadas com a filosofia, com a política e hábitos não limitados pelo trabalho produtivo cotidiano). Evidentemente, portanto, para que isso fosse viável, grande parte dos habitantes da pólis não poderia desfrutar deste ócio.
Em um contexto diferente, durante a colonização de Portugal sobre a América, em cartas enviadas pelos jesuítas do Brasil Colonial à metrópole europeia, a argumentação que eles apresentaram para justificar sua utilização da mão-de-obra de africanos escravizados consistiu em afirmar que sem essa recorrência à escravidão os padres não conseguiriam realizar as atividades religiosas necessárias à expansão da fé.
Novamente, sem o trabalho escravizado de um grande contingente da população colonial não seria possível que outros setores pudessem se dedicar à salvação das almas.
O tempo vira mercadoria de luxo
Embora tenham variado muito ao longo da História, ideias como “trabalho”, “produtividade”, “lazer”, “tempo livre”, “criatividade” e “ócio” sempre estiveram relacionados, sem que necessariamente fossem considerados contrários. Senão, seria o mesmo que dizer que as pessoas na condição de “trabalhadores” não tivessem nada a contribuir culturalmente, em outras atividades desvinculadas do trabalho. Ou que não pudessem formar ideias e nem ajudar a criar uma identidade para a comunidade e época em que vivem.
Ainda assim, desde o século 18, a ideia de ócio começou a ocupar a outra ponta quando o tema é trabalho – agora sim como se fossem inconciliáveis. As economias industrializadas ascenderam e tornaram-se hegemônicas, trazendo com elas a percepção do “ócio” como um sinônimo de “não fazer nada”, em um sentido totalmente pejorativo (algo como vagabundagem, vadiagem, enfim, uma atitude que não contribui e até mesmo atrapalha o crescimento econômico). Seria nesse sentido que o ócio se torna um obstáculo ao trabalho e à geração de riquezas.
O fato é que nos tempos em que vivemos, na Idade Contemporânea, até o tempo foi convertido em mercadoria. É por isso que poder desfrutar de longos períodos sem produzir nada virou privilégio, e atividades ligadas ao ócio passaram a ser vendidas como um ideal de vida que todos querem ostentar. Tempo virou mercadoria de luxo, e o “lazer improdutivo” um objeto almejado.
O século 20 foi o período em que se consolidou a prática de que qualquer atividade de lazer (viagens, leituras, passeios, museus, esportes, restaurantes, filmes, bares, andar pela calçada ou até mesmo não fazer nada) pode ser comercializada como uma mercadoria, cuja função é enaltecer que o indivíduo pode ostentar a liberdade de fazer o que quiser com seu tempo.
Já no século 21, com as redes sociais, as coisas mudam de figura. A intimidade de cada pessoa tornou-se pública, e mudou também a percepção do que se entende como “ócio” e “trabalho”. Se o seu trabalho consiste em vender um estilo de vida regado a lazer e tempo livre, isso ainda seria desfrutar de liberdade? Ou o “tempo livre” e o “ócio” são na verdade só uma fachada, para esconder um novo tipo de trabalho sem direitos?
Ócio empreendedor
Desde sua consolidação, o neoliberalismo não tem se limitado a moldar grandes estruturas de poder globais, corporativas ou governamentais. Na verdade, a mentalidade neoliberal precisa convencer cada pessoa de que ela não é um cidadão (com direitos ameaçados), e sim um empresário de si mesmo que está competindo com muitos outros, tentando superá-los.
+ O que é neoliberalismo e sua relação com o Brasil de hoje
A jornalista e professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Fabiana Moraes, aponta que incentivar essa postura de concorrência infinita pode gerar graves impactos à saúde mental, sobretudo em tempos de redes sociais, onde “a vida dos outros parece ser tão melhor”.
Provavelmente, muito daquilo que é apresentado como ócio, lazer e fuga do trabalho nada mais é do que o desespero de cada um para parecer que está vivendo situações tranquilas.
De onde vem a obrigação de projetar a própria imagem como alguém sem preocupações? Uma pessoa está mesmo aproveitando seu tempo livre quando precisa expor isso para outras, ou nesses casos o ócio já virou obrigação? É ócio ou competição? Por que é cada vez menos comum descansar sem falar para os outros que se está descansado? Ainda há espaço para não “fazer nada” e gostar desse silêncio sabendo que ninguém irá ouvi-lo? Que tal não ceder ao impulso de sair postando as respostas dessas perguntas?
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