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Tema de redação: as mudanças na posse e no porte de armas no Brasil

Entre decretos e projetos de lei, entenda como Bolsonaro trata uma de suas principais bandeiras de campanha – e como o assunto se relaciona com a sua prova

Por Taís Ilhéu
Atualizado em 18 fev 2021, 11h24 - Publicado em 25 ago 2020, 15h46

O porte (e antes dele, a posse) de armas no Brasil é um daqueles assuntos que já seria complexo se fosse tema de redação, digamos, cinco anos atrás. Desde 2018, quem não estiver de olho no noticiário e afiado nos debates políticos provavelmente pode se perder no meio de tantas mudanças e deixar alguma coisa de fora do texto. 

Isso porque, de 2003, quando foi sancionado o Estatuto do Desarmamento, até 2019 houve alterações pontuais na legislação de armas de fogo –  como uma lei de 2008 que, entre outras coisas, estendia a posse a moradores de áreas rurais. Mas, do início de 2019 para cá, já foram diversos decretos, portarias, projetos de lei e, mais recentemente, a revogação de uma norma com o intuito de flexibilizar o acesso às armas no país. Na sexta-feira (12), o governo Bolsonaro publicou quatro decretos nesse sentido. 

Entre as principais medidas desses atos administrativos estão:

– número de armas para defesa pessoal permitido passa de quatro para seis. Para agentes de segurança pública, será possível adquirir, ainda, mais duas armas de uso restrito;
– retirada de diversos itens, entre eles projéteis e miras telescópicas, da lista de Produtos Controlados pelo Exército;
– cidadãos “idôneos” poderão fazer cursos de caça e armamentos sem serem associados a instituições;
– pessoas com registros de caçadores e colecionadores não precisarão de autorização do Comando do Exército para compra de armas dentro dos limites;
– o porte de atirador e caçador será estendido para “qualquer itinerário realizado entre o local de guarda autorizado e os de treinamento, instrução, competição, manutenção, exposição, caça ou abate, independentemente do horário, assegurado o direito de retorno ao local de guarda do acervo”;
– será possível obter certidão de aptidão psicológica com qualquer profissional da área, não só com os creditados pela Polícia Federal;
– pessoas de 18 a 25 anos poderão conseguir certificado de caçador e colecionador, embora não possam comprar armas;
– a pessoa poderá portar até duas armas simultaneamente e o porte valerá para o território nacional.

Recentemente, o governo já havia decidido zerar o imposto para a importação de revólveres e pistolas, que era de 20%. 

Não precisa ir muito longe para entender o porquê de tantas mudanças, quase todas partindo do Poder Executivo. Durante toda sua carreira como deputado e sua campanha eleitoral, o atual presidente Jair Bolsonaro levantou como uma de suas bandeiras principais a liberação da posse e do porte de armas para a população. E, embora venha encontrando alguma resistência na Câmara, no Senado e no Supremo Tribunal Federal, ao menos no intervalo de tempo entre assinar um decreto e ele ser derrubado, Bolsonaro tem conseguido promover mudanças significativas nesta área. 

Mas, antes de entender o que mudou no último ano e meio, o impacto dessas alterações e como argumentar a respeito delas, vamos voltar quase duas décadas para entender a principal lei que rege a posse e o porte de armas no Brasil.

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O Estatuto do Desarmamento

Sancionado em 22 de dezembro de 2003, o Estatuto do Desarmamento, como o próprio nome aponta, foi resultado de debates no meio político institucional e com organizações da sociedade civil que entendiam que era importante reduzir o armamento circulante no país. Para isso, o Estatuto colocou diversas regras que determinavam quem poderia adquirir e ter acesso a armas (o direito de posse) e quem poderia circular armado e em quais ambientes (ou seja, o porte de arma). 

É importante destacar que o Estatuto não proibiu a posse e o porte de armas no Brasil, mas os restringiu e regulamentou. Ele determinava, por exemplo, que, para comprar armas, era necessário ter mais de 25 anos, não ter antecedentes criminais, ter efetiva necessidade da posse (que deveria ser justificada a um delegado da Polícia Federal), entre outros requisitos.

Para o porte, ficava estabelecido que apenas certas categorias profissionais poderiam andar armadas, como policiais militares, policiais civis e oficiais na ativa, integrantes das Forças Armadas, guardas municipais (cumprindo alguns requisitos), promotores e juízes, agentes penitenciários e, em alguns casos, funcionários de empresas de segurança privada. 

Além dessas regras e da fixação de penas para quem as infringisse, quando aprovado, o Estatuto também estabeleceu que em 2005 seria realizado um referendo para consultar a população a respeito da proibição do comércio de armas de fogo e munição em território nacional. À época, 63,68% dos eleitores apontaram que eram contrários a essa proibição – evidência de que não é de hoje a tendência da população em favor do armamento. 

Governo Bolsonaro: o que mudou até agora 

“Como o povo soberanamente decidiu por ocasião do referendo de 2005, para lhes garantir esse legítimo direito a defesa, eu, como presidente, vou usar esta arma”, afirmou, mostrando uma caneta, o recém-eleito presidente Jair Bolsonaro, em janeiro de 2019, ao assinar um decreto que facilitou a posse de armas por civis. Lembra daquela regra de comprovar “efetiva necessidade” que mencionamos antes? Pois é, com o novo decreto presidencial, ela não seria mais totalmente necessária. 

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Em vez disso, o presidente listou alguns requisitos que, se atendidos, poderiam dar acesso a até quatro armas de fogo por pessoa que solicitasse a posse. Entre eles, estavam alguns como ser dono de estabelecimentos comerciais ou morador de cidades com elevados índices de violência. Além disso, outras pessoas que quisessem ter acesso a armamento ainda sob a regra da efetiva necessidade não precisariam mais comprová-la por meio de documentos, apenas “autodeclarar” essa necessidade. 

A medida, é claro, não foi muito bem recebida pela oposição no Congresso, nem por entidades da sociedade civil, que acusaram o presidente de assinar um decreto que se sobrepunha ao Estatuto do Desarmamento –  que é uma lei e, portanto, só pode ser modificada por outra – e de promover uma mudança que aumentaria os índices de violência. 

Antes que o decreto fosse derrubado pelo Legislativo, o presidente assinou, em maio, dois novos decretos que revogavam o de janeiro, mas estabeleciam ainda mais mudanças em relação ao Estatuto do Desarmamento. Agora, ele alterava regras também em relação ao porte de armas, estendendo-o para outras categorias profissionais como políticos eleitos, caminhoneiros, advogados e até jornalistas que trabalham com cobertura policial. 

Mais uma vez, o Congresso entendeu que se tratavam de decretos inconstitucionais, pois contrariavam o Estatuto, e antes que o texto chegasse à Câmara dos Deputados (já tinha sido derrubado no Senado), o presidente revogou  os dois textos com a publicação de quatro novos. 

Junto de três desses decretos (um deles caiu no mesmo dia), o presidente apresentou, ainda em 2019, um projeto de lei (PL) que, se aprovado, permitirá alterar o Estatuto do Desarmamento a partir de decretos. Entre as mudanças almejadas pelo Executivo está facilitar o porte para atiradores esportivos, caçadores, colecionadores, membros do poder Judiciário e outros. Além disso, algumas normas sobre aquisição e registro de armas e munição também seriam alteradas. 

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Mantidos estes decretos e com esse e outros projetos pró-armamento em tramitação, o presidente sancionou ainda uma lei que permite a “posse estendida” de arma para moradores de áreas rurais em toda sua propriedade, e não apenas dentro de casa. Mais recentemente, Bolsonaro revogou uma norma da Polícia Federal de 2018 que regulamentava a posse e porte de armas de fogo.

Antes disso, o presidente já havia causado polêmica este ano ao instruir o Exército a revogar três portarias do Comando Logístico do Exército, que facilitavam o rastreamento de armas e munições tanto de forças oficiais, como a Polícia Militar e o Exército, quanto de civis, como caçadores e atiradores desportivos. Além de reforçar regras do Estatuto do Desarmamento, essas portarias traziam novas especificações que estendiam a necessidade de código de rastreabilidade também em estojos de munição, por exemplo. 

Por fim, a própria Polícia Federal publicou também um ato normativo reforçando e “formalizando” as medidas do Executivo. Em dezembro, o governo federal deu mais um passo para facilitar o acesso a armas de fogo: a Câmara de Comércio Exterior decidiu zerar os impostos para quem importar revólveres e pistolas. Antes, a alíquota era de 20% do valor do bem. A medida passa a valer em janeiro de 2021 e exclui esses produtos da tarifa comum estabelecida entre os países do Mercosul.

Com esse vaivém de decretos, leis e normas, você deve estar se perguntando como ficou, afinal, o porte e a posse de armas no Brasil. Aí vai um apanhado com as principais mudanças de 2019 para cá:

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Hora de argumentar: o desarmamento, de fato, reduz a violência?

O debate sobre o acesso ao porte de armas, no final das contas, diz respeito a outros assuntos que, hora ou outra, vivem aparecendo também em redações e vestibulares: segurança pública e aumento da violência. Quem defende o armamento de civis, quase sempre justifica que a população armada teria melhores condições de se defender em uma sociedade cada vez mais violenta. Quem condena afirma que a violência aumentaria ainda mais com essa postura reativa, além do fato de que as armas do mercado legal poderiam ser desviadas para organizações criminosas.  

Mas o que dizem as pesquisas e os números que relacionam armas de fogo e violência?

Em 2016, diversos pesquisadores brasileiros de instituições de ensino públicas e privadas vieram à público, por meio de um manifesto, defender a manutenção das normas estipuladas pelo Estatuto do Desarmamento. Segundo eles, apesar de a violência no Brasil ter raízes e causas complexas, diversos estudos “levam à conclusão inequívoca de que uma maior quantidade de armas em circulação está associada a uma maior incidência de homicídios cometidos com armas de fogo.”

Um destes estudos é o Atlas da Violência, publicado anualmente pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Na última edição, lançada em 2019, o atlas apontou que, entre 2003 (quando foi sancionado o Estatuto do Desarmamento) e 2017, o crescimento médio anual da taxa de homicídios por arma de fogo no país foi de 0,85%, enquanto nos 14 anos anteriores ao Estatuto a taxa média anual havia sido de 5,44%. 

Mesmo com esses dados, há quem argumente que a violência, de uma maneira geral, não diminuiu com a aprovação do Estatuto –  ou mesmo que ela tenha aumentado, e muito, como aconteceu em algumas regiões com no Norte e Nordeste. Em resposta a esses questionamentos, o Ipea argumenta no Atlas da Violência 2016 que seria simplista considerar apenas o Estatuto do Desarmamento no cálculo da violência, já que outros fatores como o crescimento do tráfico e do crime organizado também entram nessa equação. Por isso, resolveram utilizar alguns parâmetros para estimar qual seria, afinal, a média de homicídios entre os anos de 2011 e 2013 se o estatuto não tivesse sido sancionado. Concluíram que a taxa seria 41% maior do que a observada. 

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Existem, ainda, relatórios que apontam o aumento das taxas de suicídio em países onde o acesso a posse e porte de armas é facilitado, como uma revisão de pesquisas publicada pela National Research Council nos Estados Unidos. Outros estudos falam, por fim, do aumento de feminicídios e de morte de crianças.

* Colaborou para o texto Felippe Angeli, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz.

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