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Tema de redação: a destruição de monumentos como forma de protesto

Destruir ou preservar? Entenda os argumentos desse debate que vem pegando fogo

Por Taís Ilhéu
Atualizado em 27 jul 2021, 12h49 - Publicado em 30 jun 2020, 18h51

Resumo:

Em 24 de julho de 2021, a estátua do bandeirante Manuel de Borba Gato (1649 – 1718), obra assinada por Júlio Guerra, foi incendiada por manifestantes. Um grupo intitulado Revolução Periférica assumiu a autoria do incêndio. Em seu perfil no Instagram, os membros compartilharam uma ação em que colaram lambe-lambes em postes com a pergunta: “Você sabe quem foi Borba Gato?”

Instalada na Praça Augusto Tortorelo de Araújo, no bairro de Santo Amaro, em São Paulo,o monumento foi inaugurada em 1963.

Segundo o livro “Vida e Morte do Bandeirante“, de Alcântara Machado, lançado em 1929, Borba Gato foi um dos mais celebres bandeirantes paulista. Entre os séculos 16 e 17, os bandeirantes exploravam territórios no interior do país, capturando, escravizando e estuprando indígenas e negros encontrados pelo caminho, além de roubar minas de metais preciosos nos arredores das aldeias.

O protesto não é um ato isolado no mundo.

Em 2020, a derrubada de uma estátua em Bristol, na Inglaterra, reacendeu um debate de anos sobre a destruição de monumentos históricos como forma de protesto. Mas, diferentemente de alguns anos atrás, o assunto agora parece estar ganhando mais espaço e partindo para um debate que vai além da classificação do ato como vandalismo, especialmente por parte da mídia.

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Na cobertura dos protestos que resultaram na derrubada da estátua, um repórter da Rede Globo destacou que a figura que rodou rio abaixo, Edward Colston (1636-1721), era traficante de escravos e foi responsável pela retirada de 84 mil pessoas da África no final do século 17. O monumento em sua homenagem ocupava aquele lugar em Bristol desde o século 19. 

A atitude dos manifestantes ingleses, que saíram às ruas na onda do movimento Black Lives Matter, despertou o questionamento sobre o tema em outros lugares do mundo. Nos Estados Unidos, o Museu de História Natural de Nova York anunciou que a estátua do ex-presidente americano Theodore Roosevelt será retirada da entrada principal da instituição. No caso, o problema não é Roosevelt, reconhecido como um pioneiro da conservação ambiental, mas o monumento, que traz simbologias racistas.

Na Bélgica, a estátua do rei Leopoldo 2º, responsável pela morte de 10 milhões de pessoas no Congo Belga, antiga colônia de propriedade pessoal do monarca, também caiu pela mão de manifestantes. Até no Brasil um projeto de lei foi apresentado pela deputada estadual Érica Malunguinho (Psol-SP) para a remoção de monumentos que homenageiam figuras escravagistas em todo o estado de São Paulo. 

Mesmo com o avanço dessas ações, a destruição de monumentos não deixa de suscitar contradições. Para argumentar sobre o assunto em uma redação de vestibular, é preciso resgatar a origem e as demandas desses movimentos, como eles se expressam ao redor do mundo e as possíveis soluções. Para nos ajudar a entender tudo isso, convidamos o professor Raphael Tim, que dá aulas de História no curso Anglo. Tome fôlego e prepara-se para as anotações! 

Argumento por exemplificação 

Se você anda praticando bastante redação, sabe que um tipo de argumento que funciona muito bem é usar exemplos que demonstrem que determinado acontecimento não é um caso isolado – e que, portanto, possui raízes mais profundas e está relacionado a uma estrutura. Então, vale começar sublinhando que, apesar de ter ganhado mais destaque com as manifestações antirracistas das últimas semanas, a destruição de monumentos como forma de protesto não é coisa nova nem outros países, nem no Brasil. 

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África do Sul em 2015

Em 2015, estudantes da Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul, iniciaram um movimento chamado Rhodes Must Fall (Rhodes deve cair), em referência a uma estátua em homenagem ao inglês Cecil Rhodes presente no campus da universidade. Nascido mais de um século depois de Colston, Rhodes, outro nome proeminente na história do neocolonialismo, fez fortuna explorando diamante em países africanos. Mesmo depois de a estátua ter sido removida, ainda em 2015, o movimento continuou a instigar outras universidades a questionar suas heranças colonialistas: os alunos da Universidade de Oxford, por exemplo, que também tem uma estátua do inglês, aderiram ao Rhodes Must Fall e lutam há cinco anos para a retirada do monumento. Apenas agora, na esteira do Black Lives Matter, os funcionários da universidade votaram pela retirada. 

Estados Unidos em 2017

Do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos, a estátua de um polêmico líder da Guerra Civil Americana, o general Robert Lee, provocou a marcha racista de Charlottesville (Virgínia). Em 2017, o poder público local havia aprovado a remoção de um monumento a Lee de um dos parques públicos da cidade. Supremacistas brancos não aceitaram muito bem a decisão de retirar a homenagem ao general, um notório escravagista, e iniciaram suas manifestações.

Brasil em 2013

Por fim, como as bancas de vestibular (especialmente do Enem) valorizam o enfoque nacional, saiba que o Brasil não só já foi palco de protestos semelhantes, como isso ocorreu antes dos exemplos citados até agora. Em 2013, o Monumento às Bandeiras, em São Paulo, acabou manchado de tinta vermelha e com uma pichação com os dizeres “bandeirantes assassinos” depois de uma manifestação contra um projeto de lei que tirava do governo federal a autonomia para demarcação de terras indígenas. 

O monumento é uma obra do escultor Victor Brecheret (1894-1955) e retrata bandeirantes à frente, em cavalos, conduzindo negros e indígenas que realizam trabalhos pesados atrás deles. Embora muitos defendam se tratar de uma homenagem aos diferentes povos participando da construção do país, é sabido que os bandeirantes atuaram na captura de escravos, destruição de quilombos e aprisionamento de indígenas. O protesto contra o monumento em 2013 não foi o último, e ele e outras homenagens a bandeirantes, como a estátua de Borba Gato, também em São Paulo, voltaram a amanhecer pichadas em outras ocasiões, como em 2016.

Revisionismo ou reparação?

Provavelmente você já percebeu que há uma linha em comum que liga todos esses monumentos alvos de protestos: em sua maioria, homenageiam homens brancos que participaram de alguma maneira de processos de colonização e escravidão. O professor Raphael Tim explica que essas estátuas foram levantadas nos séculos 19 e 20, quando a parcela dominante da sociedade considerava positivo homenagear esse tipo de figura. Segundo ele, essa era uma maneira também de heroicizar esses homens, além de uma estratégia de apagamento da história. E é aqui que entra o papo de revisionismo. 

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Muitos apontam que a derrubada ou a simples remoção dessas estátuas dos lugares onde estão deveria ser lida como uma tentativa de revisionismo histórico – uma negação e silenciamento do passado. Mas, para Tim, o uso do termo nesse contexto é equivocado, pois a construção dessas estátuas, para começo de conversa, é que deveria ser lida como uma tentativa de silenciar os acontecimentos históricos: “você está pegando uma passagem do passado, de assassinato, de opressão, escravidão e falando que ela é algo bonito”. Seria preciso reconhecer, portanto, que as pessoas que se opõem a essas imagens fazem um pedido de reparação: que seja reconhecida uma outra versão da história, que evidencie qual foi, de fato, a atuação desses homens outrora homenageados.

Ou seja, os bandeirantes tiveram papel preponderante na formação do Brasil, na consolidação do território e no desenvolvimento do interior. Mas eles, notoriamente, fizeram isso a um custo humano muito alto. Esse outro lado da história, de pilhagem, escravidão e morte, não aparece nos monumentos.

Segundo o professor, o debate quase inexistente sobre história faz com que hoje uma parcela da população defenda a manutenção desses monumentos como e onde estão pela simples defesa de um patrimônio do qual ela desconhece a história. E, nesse sentido, Tim também apresenta o argumento de que o caso brasileiro é ainda mais emblemático que o americano ou o inglês, já que aqui a maior parte da população descende justamente daqueles que foram oprimidos pelos homenageados nas estátuas.  

Proposta de intervenção: resta defender a derrubada das estátuas?

Não necessariamente. Apesar de discordarem das homenagens a essas figuras, a destruição delas não é o ideal para Raphael Tim nem para Érica Malunguinho. Ambos apontam como saída a realocação dessas estátuas de vias públicas para outros locais, como museus e centros de conservação. Assim, ainda poderiam ser objeto de estudo e poderiam servir como exemplo e lição para que esses eventos históricos não voltem a se repetir.

Tim aponta que já existem movimentos semelhantes que visam a rememorar fatos relacionados a populações oprimidas, como a instalação de placas em centros históricos relatando episódios que se passaram ali. Foi nessa linha de preservação da memória que o governo federal, junto a organizações sociais, ativistas e o Iphan mobilizaram-se a partir de 2014 para que o Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, fosse restaurado e preservado. Reconhecido pela Unesco em 2017 como patrimônio da humanidade, o local é considerado o maior porto escravagista da história da humanidade, por onde, estima-se, 2,4 milhões de pessoas escravizadas tenham chegado ao Brasil. Tânia Andrade Lima, uma das arqueólogas coordenadoras da escavação que descobriu os escombros do porto, reforça a importância do resgate da história ocorrida no local: “a exposição ao público da materialidade do Valongo funciona como uma denúncia, nos leva a lidar abertamente, a sentir e a reviver os horrores da escravidão de africanos. Esta é uma história que não pode ser esquecida. Deve ser lembrada, lembrada sempre, para que nunca mais se repita”, afirmou em entrevista ao UOL.

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Embora o caso do Valongo não seja diretamente comparável ao das estátuas de escravagistas e colonizadores agora alvos de protesto –  já que elas nasceram unicamente como uma homenagem – o historiador do Museu Paulista da USP (Museu do Ipiranga), Paulo César Garcez Marins, disse em entrevista ao UOL Tab que uma medida semelhante a essa fosse implementada. “Não consigo aceitar que monumentos permaneçam sem placas, textos, código QR, que respondam por que foram feitos, por que são contestados e por quem. Ferramentas que favoreçam posicionamentos e construções de memória. Uma gestão pública deve manter a polêmica explícita para estimular o debate“, defende Marins.

Por fim, o professor Tim pondera que, apesar de considerar que o ideal seria o recolhimento e preservação dessas peças, não é possível controlar a destruição de estátuas nem fazer um debate maniqueísta. Para ele, a derrubada desses monumentos deve ser lida não como destruição da história, mas como parte dela, e impedir esse movimento de questionamento representaria um silenciamento não só do passado, como também do presente. “Se no passado as pessoas que colocaram essas homenagens acreditaram que elas deveriam ser mantidas eternamente, as pessoas do presente desse negócio vivo chamado História não acreditam mais nisso. Então elas exigem de variadas formas, seja por meio da derrubada física de uma estátua ou por meio de petições, que essas pessoas não sejam mais homenageadas da forma como foram no século 19 e 20”.

Manter, debater e intervir artisticamente

Em entrevista ao podcast Café da Manhã, em 27 de julho, a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, autora dos livros Brasil, Uma Biografia e Sobre o Autoritarismo Brasileiro, lembra que personagens da história como Borba Gato remetem a um passado violento que está presente até os dias de hoje. O que está sendo possível atualmente, segundo Lilia, é a possibilidade de reler a história a contrapelo, ou seja, a partir do protagonismo de populações que por décadas foram silenciadas, como a africana, indígena, ribeirinha, quilombola, periférica, as mulheres e a população LGBTQIA+.

E sobre a retirada de monumentos? A antropóloga diz que precisamos politizar essas imagens e que todo monumento nasce para ser contestado. Mas que há soluções interessantes como a criação de “contra-monumentos” ao lado de obras que hoje são lidas como polêmicas. Um exemplo trazido pela professora foi a projeção realizada em 2020 sobre o Monumento das Bandeiras, no Parque Ibirapuera, idealizada pelo artista Denilson Baniwa intitulada “Brasil Terra Indígena”, que representava o naufrágio de uma embarcação portuguesa tragada para o fundo do mar pelas forças da natureza. Outro exemplo foi a mudança, em 2016, do nome oficial do Minhocão, em São Paulo, que homenageava o presidente que institui o AI-5, Costa e Silva, para Elevado João Goulart, presidente deposto pela ditadura militar. “Trata-se de um momento importante na história para que o Brasil se posicione frente a aparente neutralidade iconográfica que os monumentos representam”, concluiu Lilia.

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