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“Ensimesmado”, “destarte”: palavras difíceis garantem nota boa na redação?

Muitos alunos conquistam notas máximas em redações de vestibulares escrevendo de um jeito rebuscado. Mas afinal, o que é um bom texto?

Por Taís Ilhéu
Atualizado em 20 abr 2023, 17h38 - Publicado em 20 abr 2023, 14h57

Uma grande febre tomou conta da literatura do século 19. Era o Parnasianismo, movimento literário que buscava o culto à forma, a arte pela arte – e valorizava a escrita rebuscada, o uso de palavras difíceis, as rimas raras. Quanto mais requintado o texto, melhor. Algumas décadas depois, porém, com a chegada do Modernismo, a moda do Parnasianismo caiu em desuso. Ainda assim, o movimento reforçou algumas ideias que estão bem enraizadas na cultura brasileira. Uma delas é a crença de que um texto difícil – cheio de palavras incomuns, firulas e frases complicadas – é um bom texto. 

Quem lê as redações mais bem avaliadas dos vestibulares, principalmente da Fuvest dos últimos anos, pode às vezes se deparar com produções parecidas com as dos parnasianos. São redações cheias de palavras como “ínterim”, “hodiernas”, “ensimesmado”, termos que não aparecem no português falado ou até mesmo nos livros. Mas será que isso é de fato uma boa redação? “Escrever complicado”, afinal, causa uma boa ou uma má impressão? O candidato ganha pontos por usar palavras difíceis?

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Encontrar o equilíbrio perfeito, a medida certa entre um texto bem escrito e um que beira o erudito – e pode parecer um enigma até para o avaliador da prova – não é um desafio fácil. Por isso, O GUIA DO ESTUDANTE ouviu quem entende muito de redação para entender o que está acontecendo nos vestibulares, e o que a banca de fato procura em um bom texto. 

O que dizem os manuais dos vestibulares

Para começar, é preciso recorrer ao oráculo de todos os vestibulandos: os manuais do candidato. Os dois maiores vestibulares do país, a Fuvest (que seleciona estudantes para a USP) e o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), explicam no documento quais são os critérios de correção de suas redações – e, portanto, quais as exigências que os candidatos devem obedecer. 

Guardadas as diferenças entre as duas provas, a única menção que ambas fazem ao vocabulário a ser utilizado pelo candidato é que ele precisa ser “adequado”. Meio vago, mas o Manual dos Corretores do Enem, divulgado em 2019, explica com mais detalhes: “os desvios de escolha vocabular dizem respeito à escolha lexical imprecisa de uma palavra no contexto em que ela se encontra”. Ou seja, ocorre uma inadequação vocabular quando o estudante utiliza uma palavra que simplesmente não significa o que ela pretende expressar. 

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Fora isso, não há nenhuma menção ao emprego de vocabulário rico, vasto, erudito ou algo assim. O que a maioria dos vestibulares pede, no geral, é que os candidatos façam uso da norma padrão da Língua Portuguesa. E esse é o ponto que confunde muita gente. 

“É uma confusão que se faz entre a norma culta e a norma padrão. Norma padrão é simplesmente você escrever respeitando o funcionamento da Língua Portuguesa”, explica uma ex-corretora de redações da Fuvest ao GUIA DO ESTUDANTE. Como ainda trabalha como avaliadora de outros exames, o Enem e o Encceja, ela pediu que não fosse identificada nesta matéria.

Ou seja, seguir a norma padrão nada mais é do que obedecer às regras gramaticais e não usar gírias, abreviações ou outras marcas da linguagem informal.

E eis aí a contradição: a norma culta, que segundo ela é empregada por uma parcela menor e mais letrada da sociedade (e que pode incluir textos mais difíceis de serem entendidos ou palavras menos comuns), não é exigida nas provas. 

Falar bonito impressiona os corretores?

Apesar de “escrever bonito” não aparecer como critério nem em letras miúdas no pé dos manuais, a corretora conta que não é incomum que textos, digamos, mais rebuscados, cheguem nas mãos dos corretores da Fuvest. 

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De fato, é mais comum ocorrer esse tipo de texto no vestibular da USP do que no Enem. Em certa medida, é até compreensível: antes da última edição, quando pediu uma redação sobre refugiados ambientais, a prova tinha a tradição de sugerir temas mais abstratos, como “As utopias: indispensáveis, inúteis ou nocivas?” e “Imagem e Realidade”. Isso fez, por exemplo, que algumas redações que tiraram nota máxima nos últimos anos contivessem palavras como “passivação”, “indubitavelmente” ou “desvão”.

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Para a corretora, o imaginário em torno da Fuvest contribui para que a banca se depare com mais redações do tipo. Segundo ela, a prova é reconhecida pela exigência em comparação às outras, teoria que até tem um pé na realidade. “Não tem nenhuma colher de chá”, explica a avaliadora, pontuando que é preciso mobilizar vários repertórios socioculturais para alcançar a nota máxima e desvios gramaticais costumam ser mais penalizados do que no Enem, por exemplo. 

Em nota ao GUIA DO ESTUDANTE, a Fuvest explicou que um texto com “raras inadequações” pode até ser pontuado com os 50 pontos, mas é preciso demonstrar completo “domínio da modalidade escrita da língua em registro formal”. 

Toda essa atmosfera de vestibular exigente leva os alunos a se esforçarem para empregar termos mais “requintados” na prova. Para a corretora, no entanto, os candidatos se dividem em dois grupos: os que escrevem naturalmente desta maneira, por terem grande domínio da norma culta e maior repertório acumulado, e os que tentam empregar termos mais difíceis, mas que não acabam derrapando em uma “erudição decorada” e não conseguem desenvolver um bom texto. 

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Tiro pela culatra

A tentativa de “escrever bonito” sem ter, de fato, um domínio das palavras que está empregando pode resultar em escorregões que não passam despercebidos pelos corretores. Isso quer dizer que fica bem evidente quando uma redação não tem argumentação sólida, apesar de empregar palavras bonitas. E às vezes essas palavras bonitas até soam fora de lugar – para não dizer completamente equivocadas. Para exemplificar um caso de inadequação vocabular, o Manual dos Corretores do Enem traz, por exemplo, o trecho de uma redação em que o candidato usa o termo “logaritmo” – uma função matemática – quando o tema proposto pela banca fazia referência, na verdade, aos “algoritmos” – um tipo de tecnologia empregada na internet.

 

Língua, uma ferramenta de poder

A professora pernambucana Fernanda Pessoa, que teve três alunas nota mil na redação do Enem de uma só vez em 2021, é mais adepta da segunda teoria elaborada pela corretora, de que a incidência de textos rebuscados se deve ao fato dos alunos tentarem impressionar a banca. Mas, segundo ela, a culpa não é dos estudantes. 

“Estratégia de sobrevivência” é como descreve. De acordo com a professora, os alunos são ensinados desde cedo na escola – e em outros espaços – que utilizar palavras rebuscadas para escrever e falar é uma maneira de se destacar. 

Para quem ensina, também fica mais fácil perpetuar essa tradição: basta reunir algumas dezenas de “hodiernos” e “absurdidades” e pedir que os alunos incluam essas palavras na redação – o que muitos perfis na internet tem feito nos últimos anos, aliás. Seriam fórmulas fáceis que supostamente garantiriam boas notas.

E embora Fernanda e a avaliadora tenham divergências sobre o quanto uma redação de vocabulário rebuscado diz ou não sobre a preparação do aluno, ambas concordam sobre qual seria a pílula – nada mágica – para curar essa Síndrome de Olavo Bilac, o mais famoso dos parnasianos: os estudantes precisam ser treinados para pensar. 

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Precisam aprender quais são os intelectuais que pensaram e pensam o Brasil – e não tentar encaixar Kant ou Bauman em qualquer reflexão sobre a realidade brasileira, sem entender o que eles de fato disseram. Ler livros relevantes, assistir a filmes que instiguem a reflexão. Devem entender os problemas contemporâneos do país e do mundo, desenvolvendo um olhar crítico sobre eles. 

“Se eu não tenho acesso a conhecimento, qual vai ser o meu parâmetro para o que é inteligente? Se eu não tenho acesso à pintura, escultura, música, cinema, teatro, Filosofia e Sociologia e tenho que fazer uma redação, o parâmetro é a palavra e não a ideia. A palavra eu posso decorar”, finaliza Fernanda, que defende que o processo histórico brasileiro adestra para a ideia de que falar bem é falar difícil – afinal, na nossa cultura, a língua comumente é utilizada como ferramenta de poder e de exclusão. Um exemplo dessa tendência é o famoso “juridiquês”, textos elaborados por advogados e juristas, e que nem mesmo pessoas muito escolarizadas conseguem decifrar.

No fim, trata-se de uma concepção um tanto quanto torta de que ser inteligente é se expressar de forma que ninguém entende, seja escrevendo uma redação com palavras que deixariam até Guimarães Rosa de cabelo em pé ou usando mesóclises que dariam inveja a ex-presidentes na hora de pedir um pãozinho na padaria.

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