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Análise: redação nota máxima da Fuvest 2023 citou Drummond

Rafael Lara Nohmi, um dos 14 estudantes a alcançar a nota máxima na redação, foi aprovado no primeiro lugar no curso de Medicina da USP

Por Taís Ilhéu
Atualizado em 30 mar 2023, 10h01 - Publicado em 29 mar 2023, 12h27

O vestibular da USP é considerado um dos mais difíceis e concorridos do país. Prova disso é que, na Fuvest 2023, somente 14 candidatos conseguiram alcançar a nota máxima na redação, cujo tema foi “Refugiados ambientais e vulnerabilidade social”. Além de reportagens e dados sobre o assunto, a banca disponibilizou textos de apoio dos escritores Graciliano Ramos e Ailton Krenak, além da fotografia Êxodos, de Sebastião Salgado.

Um dos estudantes a alcançar a nota 50 – que é a máxima da prova – foi Rafael Lara Nohmi, de 19 anos, morador de Belo Horizonte. Com a pontuação da redação e um ótimo desempenho em outras disciplinas, Rafael conquistou o primeiro lugar no curso de Medicina

Como ele se preparou para isso? Dentre outras formas, lendo redações de outros candidatos que alcançaram o feito em anos anteriores.

“Foi uma das coisas que eu mais fiz! Eu lia as redações com nota máxima da Fuvest, analisava cada uma e buscava entender como os candidatos construíam seus pontos de vista. Assim, fui me inspirando um pouquinho em cada um. Peguei várias influências e criei meu próprio estilo”, afirmou em entrevista ao GUIA DO ESTUDANTE.

+ Confira outras dicas de Rafael para “gabaritar” a redação

Abaixo, você lê a redação do estudante e confere comentários das coordenadores de redação do Poliedro Curso, Fabiula Neubern e Gabrielle Cavalin, sobre o texto.

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Ah, e além de ser agora um calouro de medicina, Rafael criou a conta @rafaellmed no Instagram onde ele compartilha dicas de estudos, de redação e conta mais da sua rotina na USP.

Título: “Entre clima e capital”

Introdução

Vivemos no Antropoceno, recente era geológica criada a partir dos efeitos dos exponenciais impactos naturais causados pela intervenção antrópica: o homem, moldado pelo imediatismo e pelo ensimesmamento advindos do capitalismo neoliberal, quase como um vício neurológico, precisa, cada vez mais de alienar-se no seu consumo – droga. Assim, sob o efeito alucinógeno do comprar, já não interessa o que ocorre ao seu redor e nem de onde veio sua mais nova aquisição – se sua origem é ecológica, de uma produção agroflorestal sustentável, ou se é predatória, da exploração de menores e da redução, por exemplo, de paisagens, como a mineira Serra do Curral, a pó pouco importa, afinal, a real diferença consiste no preço. E é exatamente nesse cenário de autodegradação e de agressão do meio que se constrói a chocante crise ambiental contemporânea, a qual desencadeia, em um contexto de assimetrias de poder, a questão dos refugiados climáticos, potencializada pela vulnerabilidade social, invisibilizada pela indiferença coletiva.

O autor inicia o texto expondo a intervenção humana como responsável pelos desastres naturais, alicerçando essa análise na doutrina neoliberal, tanto que faz referência ao conceito de antropoceno. Depois disso, ele compara o ato de consumir ao vício em drogas para mostrar que, na tentativa de cumprir com os anseios do consumo – igual uma pessoa viciada que é capaz de tudo para saciar o seu desejo de ópio –, a pessoa releva toda consequência negativa que esse ato pode gerar. O autor finaliza o parágrafo mostrando como esse vício pelo consumo gera um cenário de “autodegradação e de agressão ao meio” o que propicia as crises ambientais que vivenciamos hoje e, consequentemente, a existência de refugiados ambientais e o aumento da vulnerabilidade social (tema da redação) – potencializada, na visão defendida, pela indiferença coletiva a esse problema.

O percurso argumentativo construído na introdução já oferece ao leitor os principais aspectos que fazem desse texto uma redação nota máxima: o domínio da estrutura da dissertação – demonstrado pelo excelente encaminhamento entre a contextualização e a tese defendida –, a informatividade – marcada pela riqueza de referências teóricas e exemplos atuais para ilustrar a análise feita – e o trabalho refinado com a linguagem – evidente ao construir uma relação entre consumo e drogas, o que permitirá, ao longo do texto, que diferentes expressões do campo semântico relativo às drogas possam ser empregadas para se referir, na verdade, ao ator de consumir.

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Vale destacar também o potencial argumentativo da tese, construída por meio de relações de causa e consequência que, normalmente, na Fuvest, tendem a render parágrafos de desenvolvimento com maior complexidade de análise. O autor consegue inserir o tema da redação – refugiados ambientais e vulnerabilidade social – numa lógica de causa e consequência, em que o antropoceno é a causa para a existência dos refugiados ambientais e a indiferença coletiva para o aumento da vulnerabilidade social.

Desenvolvimento 1

De fato, em um sistema cujo funcionamento é asfixiado pelo postulado do dinheiro, é conveniente, para as elites dominantes mascarar tudo aquilo que pode por em cheque seus tão doces privilégios. Por isso, sob uma ótica marxiana, a invalidação da atual situação de catástrofe é um excelente “ópio do povo”. A partir da disseminação de “fake news” em um mundo de pós-verdade e do anticientificismo, desastres como os alagamentos avassaladores de Petrópolis em 2022 e a elevação dos níveis dos oceanos, devido ao derretimento de geleiras, são menosprezados e tidos como “comuns”, pois são parte dos “naturais” eventos do clima. Dessa forma, o êxodo de refugiados gerado por essas circunstâncias, apesar de ser maior que o de guerras e conflitos, é ocultado e diminuído, pois ter consciência dessa situação é ter prova concreta de que a ordem vigente é instável e, sadicamente, suicida. Logo, há um projeto político intencional de cegueira para com esses deslocados sobreviventes – tal alteridade desafia o “status quo”.

No desenvolvimento 1, chama a atenção a escolha por fazer referência aos estudiosos de Marx, ao citar a ótica marxiana, e não apenas reproduzir ideias comuns associadas à doutrina marxista que muitas vezes são citadas nas dissertações, porém sem que revelem uma leitura crítica ou aprofundada das ideias do sociólogo, diferentemente do que acontece nessa redação.

Desenvolvimento 2

Ademais, nessa sociedade sedada pelo mantra “consumo, logo existo”, cria-se uma aceitação passiva dessa estrutura e desse tráfego (ou tráfico) humano, o qual, como grande parte das problemáticas sustentadas pelo capital, atinge especialmente os mais pobres. Isso ocorre porque, em áreas vulneráveis ambientalmente, aquelas que possuem melhores condições econômicas podem investir em tecnologias para retardar a necessidade de fuga. Porém, naquelas frágeis socioeconomicamente, como a África subsaariana e o Sul asiático, isso não é possível: ainda em processo de recuperação após o brutal espólio imperialista europeu, a expansão da desertificação e das inundações são fenômenos contra os quais é difícil resistir. Como conseguinte, sem acesso a condições básicas como água e com produtividade alimentícia comprometida, resta o escape desumanizante e injusto. E, então, nessa lógica, o indivíduo comum, sujeito político, por causa de seu compulsivo relacionamento com o possuir, verbo esse que gera aceitação e exibicionismo social, prefere fechar-se narcisicamente em si e blindar-se a essas absurdidades. Analogamente à descrição precisa de Drummond em seu poema “Inocentes do Leblon”, a expansão do deserto do Saara é irrelevante, assim como as brutalidades que ela provoca, pois o aquecimento global gera um calor agradável e um sol raiante, perfeito para seus ingênuos “stories” do Instagram: a vida do outro pouco importa.

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No desenvolvimento 2, aspectos que se evidenciaram no parágrafo anterior como informatividade e escolhas lexicais precisas continuam sendo os destaques da argumentação. O autor cita fatos históricos como o imperialismo europeu, fatos atuais como a situação socioeconômica da África Subsaariana e do Sul asiático e relaciona as consequências da indiferença social – provadas pelos exemplos citados – à literatura, ao fazer a analogia com o poema “Inocentes do Leblon”, de Drummond. É importante destacar que a informatividade – demonstrada nesse texto pelas muitas referências que são citadas – é um fator de coerência que garante um olhar maduro sobre a questão e mostra que o autor domina o tema em análise. No entanto, novamente, há um risco de alunos em preparação para o vestibular lerem esse texto e acharem que o sucesso desse texto se dá por ele trazer muitas referências, mas não é isso. O sucesso desse texto se dá pela capacidade que é demonstrada de subordinar e relacionar claramente essas diferentes informações à análise que está sendo feita e, portanto, à tese defendida. 

Quanto à linguagem, vale destacar o trocadilho entre as palavras tráfego e tráfico feito no início do parágrafo e que mais uma vez recupera o campo semântico construído desde o início da redação pela comparação entre consumo e droga.

Conclusão

Portanto, é visível como o império do lucro e do consumo, causadores da trágica condição climática global, sob as mãos dos poderosos, mascaram a crise dos refugiados ambientais, vítimas desse esquema abusivo. Além disso, a vulnerabilidade social desses sujeitos catalisa e amplifica essa espantosa situação, a qual é ignorada pelo cidadão comum – para ele, a letargia psicotrópica do consumismo é mais prazerosa.

Mais uma vez, na conclusão, ao se verificar o emprego de expressões como “mãos dos poderosos”, “letargia psicotrópica” e de verbos como “mascaram” e “catalisa” o aluno demonstra que o domínio da linguagem é um diferencial desse texto e indicativo da construção da autoria dessa redação. Da mesma maneira, o trabalho com a informatividade e com os recursos argumentativos mostram que esse texto possui um projeto de texto muito cuidadoso e são características irrefutáveis de uma autoria muito bem configurada.

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