Cotista na USP, estudante faz campanha para concluir estudos em Portugal
Gabriel, de 21 anos, fala sobre o impacto da cotas e sobre a necessidade de ampliação das políticas de permanência nas universidades
No início do mês de junho, Gabriel Calebe, 21, recebeu a carta de aceite do Instituto Superior Técnico de Lisboa, em Portugal. O jovem, que cursa o quarto ano de Engenharia Ambiental na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), participou do processo seletivo pela própria instituição para ter a chance de estender seus estudos em uma renomada universidade portuguesa, conquistando um diploma duplo. A aprovação chegou, mas junto dela vieram as preocupações com os gastos da viagem.
A bolsa não inclui os custos de moradia, alimentação e transporte ao longo dos dois anos de intercâmbio. Além disso, antes mesmo de ir, existem despesas como visto e passagem. Pelos cálculos do estudante, os gastos para ele se manter em Portugal somam em média 50 mil reais por ano – um valor que nem de longe cabe no orçamento dele e ou de sua família. Gabriel, que ingressou na USP por meio das cotas étnico-raciais, tentou encontrar bolsas financeiras disponíveis tanto dentro como fora da universidade, mas sem sucesso. A saída foi buscar apoio nas redes sociais.
Com ajuda da irmã e da namorada, o jovem publicou um vídeo explicando sua situação e espalhou o link de uma “vaquinha” para que pessoas pudessem colaborar com qualquer valor para que sua viagem acontecesse. O retorno foi muito positivo: a história de Gabriel saiu da periferia da zona norte de São Paulo, onde reside, e tocou pessoas de todo país. Em duas semanas de campanha, Gabriel conta que 60% do valor já foi arrecadado.
O jovem, agora, continua empenhado para juntar o que falta para desembarcar em setembro em terras portuguesas, aproveitando uma chance que, como ele descreve, pode “mudar a rota de sua vida”. E nada disso foi sem esforço. O disputado processo seletivo que dá acesso à universidade portuguesa foi composto por análise do desempenho acadêmico ao longo da graduação, avaliação do currículo, para entender atividades e projetos que o aluno já se envolveu, e uma investigação de como o duplo diploma agregaria em sua trajetória.
Nos próximos dois anos em Portugal, Gabriel fará uma especialização na área de engenharia ambiental e ao final, apresentará uma dissertação sobre o tema. “A experiência vai permitir que eu me desenvolva na área acadêmica, que já tive contato na graduação com iniciações científicas”, contou Gabriel ao GUIA DO ESTUDANTE. O plano, depois, é retornar ao Brasil e finalizar a graduação na USP.
“Além de ser um passo importante para conseguir mudar a realidade da minha família, realmente enxergo como oportunidade de ser espelho para outros jovens da quebrada, assim como eu. Acredito que vou trazer representatividade e motivação“, acrescenta o estudante.
Ocupando espaços
Gabriel passou na USP em 2019 na modalidade PPI – destinada a candidatos com renda familiar menor ou igual a 1,5 salário mínimo per capita que se consideram pretos, pardos ou indígenas. A política de cotas raciais só foi aprovada em 2017 na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, onde estuda. Os primeiros ingressantes cotistas entraram em 2018, um anos antes dele.”Quando eu entrei a faculdade era muito mais ‘embranquecida’ e elitista do que ela é hoje. Apesar de ainda precisar melhorar muito, aos poucos ela está com os olhos mais voltados para esses alunos cotistas e de baixa renda”, conta Gabriel que também faz parte do Coletivo Poli Negra.
No ano em que a Lei de Cotas completa 10 anos e deve passar por uma revisão, o estudante faz questão de reforçar a importância das ações afirmativas. “Para mim, não faz sentido uma pessoa em 2022 não entender a questão da desigualdade social e a necessidade de uma política para ajudar pessoas que tiveram um caminho cheio de obstáculos a ter acesso a uma universidade”, diz Gabriel. Ele completa: “No meu caso foi muito difícil, mas se não fossem as cotas, essa dificuldade seria multiplicada por mil”.
Para pleitear a vaga na universidade, Gabriel fez um cursinho que não precisou pagar porque prestava serviços como bibliotecário. “Eu aproveitava para estudar na biblioteca e usufruir o material do curso”, conta.
O jovem relembra que a entrada na USP foi um choque de realidade. Dentro da sala de aula, ele passou a conviver com pessoas de “mundos muito diferentes do dele”, com uma bagagem escolar muito mais “completa” e fluente em mais de uma língua estrangeira, por exemplo. “Fiquei com medo de não acompanhar e até cheguei a pensar que não ia conseguir e que ali não era o lugar para mim”, conta. Gabriel afirma que foi a força vinda da família e crença que a educação é transformadora que fez com que continuasse e chegasse até aqui.
Também foi a partir da sua própria realidade que ele entendeu o caminho que gostaria de trilhar dentro da Engenharia Ambiental: trabalhar com saneamento básico. “Durante aulas e pesquisas, eu lembrei do local onde eu nasci. Em frente a minha casa, corria um esgoto a céu aberto”, descreve. “Vi, então, uma chance de trabalhar nisso e retornar esse conhecimento em melhoria das condições de vida para pessoas que vieram da mesma realidade que a minha, como um ciclo que se fecha”, diz Gabriel.
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Lutando pela permanência
Ao longo desses quatro anos de graduação, Gabriel não pôde trabalhar para ajudar nas contas de casa, já que o curso ocorre em período integral.”De início fiquei preocupado, só quando entrei na Poli descobri que a USP tem um auxílio moradia para pessoas de baixa renda, que hoje é por volta dos 500 reais, mais o auxílio alimentação para que eu pudesse me alimentar na universidade mesmo”, conta.
Essas políticas de permanência, segundo Gabriel, o ajudaram muito, mas ele destaca a necessidade de melhoria e ampliação dessas medidas nas universidades. “Eu moro com os meus pais, então o valor do auxílio eu ajudava em casa, mas e os estudantes que são de outro estado e precisam pagar um aluguel, por exemplo?”, questiona.
A falta de auxílio reverbera, inclusive, em sua tentativa de fazer um intercâmbio de Portugal. Gabriel conta que a universidade disponibilizou uma quantia de bolsas financeiras para ajudar com outros gastos, além das mensalidades da faculdade, como moradia, alimentação e transporte, mas o grupo de alunos contemplados foi muito pequeno. A seleção dos estudantes, pontua, é feita principalmente por critérios de mérito, e não socioeconômicos.
Assim, para estudantes de baixa renda não basta ser aprovado em uma universidade estrangeira. As despesas da viagem se tornam mais uma barreira a ser ultrapassada.
“Com as cotas, acredito que cada vez mais pessoas de baixa renda estarão dentro da sala de aula de universidades públicas, mas as instituições precisam se preparar para que esses alunos não percam oportunidades legais, como um intercâmbio, por falta de recursos e suporte”, defende Gabriel.
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