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Hiroshima – O abominável mundo novo

Seis de agosto de 1945. Uma superbomba explode sobre o Japão, matando cerca de 100 mil pessoas. As repercussões daquela manhã mudariam as regras do jogo

Por Leandro Narloch
Atualizado em 6 ago 2020, 14h18 - Publicado em 9 ago 2011, 14h05
 (Wikimedia Commons/Reprodução)
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Sol, calor, nada para fazer: um baita domingo de verão na base aérea de Tinian, uma das ilhas Marianas, no Pacífico. De folga, os soldados americanos do 509º Grupo Misto aproveitaram para tirar um cochilo, bater papo, se divertir. O major Tom Ferebee, de 26 anos, passou o dia com a luva e a bola de beisebol – ex-jogador do Boston Red Sox, uma espécie de Flamengo do tradicional esporte americano – e não via a hora de voltar para casa.

O sargento Bob Caron, de 21 anos, limpou sua máquina fotográfica. Muitos jogaram pôquer. No fim da tarde, a moleza foi interrompida com a convocação para uma reunião. O capitão da Marinha William Parsons queria dar uma notícia: no dia seguinte, 6 de agosto de 1945, aquele grupo de jovens lançaria sobre Hiroshima, no Japão, a arma mais terrível da história. “A bomba que vocês vão jogar é uma coisa nova nas guerras. É a mais poderosa arma já produzida. Vai destruir uma área de cinco quilômetros quadrados.”

Até aí, a missão para a qual os soldados do 509º estavam se preparando havia um ano era desconhecida mesmo para eles. Envolvera milhares de pessoas, entre cientistas e militares, três anos de trabalho e dois bilhões de dólares. Tudo para construir uma bomba inédita, tecnologicamente revolucionária e com o poder de 12 mil toneladas de dinamite. Mas por que os americanos precisavam de uma arma tão poderosa? Em maio de 1945 a guerra na Europa havia terminado. Hitler estava morto, e Berlim, em ruínas, ocupada pelo Exército Vermelho. Os aliados já discutiam o mundo pós-guerra e dividiam os territórios libertados pelos nazistas. Só que, enquanto a Europa era fatiada, o Japão resistia.

No dia 25 de julho, em seu gabinete improvisado no cruzador USS Augusta, no meio do Atlântico, o presidente dos Estados Unidos, Harry Truman, tomou sua decisão e ordenou o ataque nuclear ao Japão. Tinha na mão uma lista de cidades-alvo, feita pelo secretário de Guerra, Henry Stimson: Hiroshima, Kyoto, Kokura, Niigata e Nagasaki. Segundo a biografia oficial de Truman, da jornalista Nancy Lewis, o presidente excluiu uma, Kyoto, que fora capital imperial do Japão, e insistiu na escolha de um alvo militar. Hiroshima, com 40 mil soldados e 220 civis, tornou-se, assim, o alvo prioritário. No navio, o presidente escreveu em seu diário: “A arma finalmente será usada contra o Japão. Parece a coisa mais terrível já descoberta”.

Restava escolher o homem certo para a missão. O piloto da marinha Paul Tibbets, um comandante nascido em Quincy, era o favorito. Apesar de seus 30 anos de idade, já acumulava grande experiência em combate. Sua ficha, no entanto, ficou três meses nas mãos do FBI. Sua vida familiar, seus parentes e amigos da faculdade, suas preferências partidárias, tudo foi vasculhado. Afinal, Tibbets teria sob seu comando a mais mortal arma de guerra jamais construída. Nada poderia dar errado. E se desse, o comandante da missão deveria estar preparado. Tibbets receberia cápsulas de cianureto para toda a equipe. Se alguém se negasse a tomá-las, ele deveria executar o colega. Isso, porém, ainda era segredo naquele domingo de sol.
O tempo também estava claro e calorento a 2700 quilômetros dali, em Hiroshima. Mesmo sendo domingo, o trabalho não parava: a cidade era um dos poucos centros industriais do Japão que não tinham sido atacados pelos bombardeios dos B-29, que incendiavam quarteirões inteiros.

“Todos sabiam que seríamos os próximos”, lembra Takashi Morita, policial militar japonês que sobreviveu ao ataque e que, hoje, aos 82 anos, é comerciante e mora no bairro Jabaquara, em São Paulo. Ao som dos rotineiros alarmes antiaéreos das últimas semanas, os moradores gastaram o dia levando móveis para casas de parentes longe do centro ou improvisando abrigos. Grupos de meninas estudantes – os meninos com mais de 12 anos estavam no Exército – desmontavam as casas de madeira para minimizar os incêndios quando a cidade fosse bombardeada.

Em Tinian, onde o sol se punha magnífico nas águas azuis do Pacífico, os soldados inteiravam-se da missão. Partiriam em três aviões: o primeiro, apelidado de Straight Flush, examinaria o clima em Hiroshima e daria sinal verde para o ataque. O segundo lançaria a bomba e o terceiro avaliaria e registraria os resultados. O avião da bomba foi batizado pelo capitão Tibbets com o nome de sua mãe, Enola Gay, provocando a ira de Robert Lewis, que geralmente pilotava aquele B-29, mas que foi apenas co-piloto da missão. “Perguntei a ele que diabos estava fazendo. Era o meu avião e eu é que deveria escolher o nome”, diria Lewis ao historiador britânico Gordon Thomas, autor de Enola Gay: Mission to Hiroshima (Enola Gay: Missão Hiroshima, inédito em português).

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Lewis e Tibbets não se falaram mais até a hora do vôo. Às duas da manhã, a bomba de cinco toneladas, apelidada de Little Boy (“garotinho”), foi colocada no avião. “Com quase sete mil galões de combustível, a bomba e 12 homens a bordo, o bombardeiro estava perigosamente pesado”, afirma o historiador americano Malcolm McConnell, autor de A Última Missão. Um acidente na decolagem, coisa comum, poderia fazê-la explodir ali na base. O jeito era levar a bomba desarmada e montar o dispositivo de disparo a bordo, trabalho que ficou a cargo do capitão Parsons. Às 2h45 do dia 6 de agosto, o Enola Gay decolou de Tinian rumo aos livros de história.

O avião levaria cinco horas e meia para chegar ao destino, mas durante toda a madrugada soaram alarmes antiaéreos em Hiroshima. O fotógrafo Yoshito Matsushige passou a noite revelando as fotos que tirara no dia anterior para o jornal local, o Chigoku Shimbun. De manhã, às 7h30, ele ouviu mais um alarme antiaéreo. “Pela janela, vi o avião americano. Ele me pareceu enorme”, diz Matsushige. Era o Straight Flush verificando o clima na cidade. Se houvesse nuvens e pouca visibilidade, o alvo mudaria para Kokura ou para Nagasaki. Mas a manhã era de sol. “As nuvens cobrem menos de 3/10 em todas as altitudes. Aviso: alvo primário”, foi a informação que chegou ao Enola Gay.

Se permitiu que os aviões americanos avistassem seu alvo, o céu claro sobre Hiroshima também possibilitou que seus habitantes percebessem a aproximação de seus algozes. Perto das oito horas, o médico Masakazu Fujii resolveu ler o jornal no terraço de seu consultório, de onde viu o grupo de meninas retornando ao trabalho do dia anterior. No avião, o major Thomas Ferebee ajustou os aparelhos e mirou para que a bomba atingisse uma ponte que cortava um dos sete rios da cidade. A jovem Ayako, de 20 anos, que depois se tornaria esposa do militar Takashi, olhava para o relógio do seu escritório: 8h15. Nesse momento a bomba foi lançada, livre do peso, o B-29 deu um salto para cima. O “garotinho” estava a caminho. Em segundos, um clarão silencioso foi visto na cidade. Do avião, o sargento Bob Caron fotografou o enorme cogumelo. Espantado com o impacto da explosão, o co-piloto Lewis escreveu em seu diário: “Meu Deus, o que fizemos?” Essa é a versão mais conhecida. Segundo o historiador Gordon Thomas, porém, essa frase veio depois que o coronel Tibbets pediu que ele reescrevesse algo mais educado. A frase verdadeira teria sido algo como “Caramba, que filha-da-puta!”

Por quê?
Sessenta anos depois que aquele flash gigantesco e silencioso disparou a 580 metros de altura, Hiroshima é hoje uma cidade moderna e tranqüila. Tem 2,8 milhões de habitantes, é conhecida por abrigar a fábrica de carros Mazda e um dos melhores e mais populares times de beisebol do país, o Hiroshima Carps. Tem estacionamentos verticais, canteiros de azaléias e placas Enjoy Coca-Cola pela rua. A maioria dos habitantes fala inglês e é comum as clínicas de cirurgia plástica oferecerem a chamada ocidentalização das pálpebras, intervenção que transforma olhos puxados em arredondados. Da destruição da cidade, restou uma ruína, o Domo de Hiroshima, antigo palácio de exposições. E uma pergunta: por que fazer um ataque nuclear ali?

Em agosto de 1945, a guerra contra o Japão estava quase vencida. Desde março, o país vinha cedendo o domínio de ilhas importantes no Pacífico sul, como Iwo Jima, diante do avanço dos americanos comandados pelo general Douglas MacArthur. Cidades importantes como Nagoya e Okinawa estavam arrasadas. A capital Tóquio havia sido destruída por um bombardeio de 334 aviões B-29. Oitenta mil habitantes foram mortos. “Em julho, a guerra no pacífico estava ganha”, afirma o professor Justin Libby, especialista em Relações Internacionais da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos. “A rendição, porém, era um tema polêmico tanto para japoneses, quanto para americanos. Mas, pelo menos quatro tentativas de rendição negociada foram feitas por japoneses antes de Hiroshima.”

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Duas delas aconteceram por iniciativas de embaixadores japoneses na Europa impressionados com o caos na Alemanha. “Em maio de 1945, o representante japonês na Alemanha, Yoshiro Fujimura, trocou telegramas secretos com autoridades de Tóquio, apresentando as propostas de paz defendidas pelo diretor do Escritório de Serviços Estratégicos na Europa, Allen Dulles, e outros oficiais americanos na Suíça”, diz Libby. Como o cargo de Fujimura era pequeno demais para negociar o fim da guerra, ele foi ignorado por japoneses e americanos. O mesmo aconteceu com o adido militar japonês em Estocolmo, Makoto Ono. Ele entrou em contato com o rei Gustavo V, que mantinha boas relações com o imperador japonês. A idéia era chegar até o governo britânico e convencer Churchill a interceder pela paz. Ono não foi feliz. E acabou investigado por militares japoneses por querer a paz enquanto seu país queria a guerra.

A tentativa de paz mais consistente envolveu o primeiro-ministro japonês Suzuki Kantaro e foi feita via Moscou. A União Soviética e o Japão, mesmo em lados opostos, não estavam em guerra, e o japoneses acreditavam que poderiam usar a diplomacia e a força de Stálin para impor a paz negociada aos Estados Unidos. Mensagens dessas tentativas foram decodificadas pelos americanos, que as utilizaram para pressionar os soviéticos a declarar guerra aos japoneses. As mensagens mostram também que muito antes do ataque nuclear os americanos sabiam da possibilidade de rendição.

No Japão, todo mundo sabia que a guerra estava perdida. Com sua indústria de guerra paralisada, os aviões americanos B-29 passeavam pelo espaço aéreo do país quase sem resistência. Mas render-se era demais para os militares. Seria o fim do sonho expansionista que começara nos anos 30, com o Japão estendendo seus braços sobre Coréia e China. Significaria, ainda, a primeira derrota em séculos e poderia derrubar o imperador Hiroito, considerado o arahitogami, “sucessor direto dos tempos eternos”.

Por isso, os manda-chuvas do Conselho japonês, incluindo o primeiro-ministro, estavam divididos. Alguns aclamavam a população para lutar a ketsu-go, a “batalha decisiva pela pátria”. Entre eles estava o ministro da Guerra, Korechika Anami, um fanático pela tradição guerreira do país, que, como um antigo samurai, escrevia poesia clássica e dominava o kendo, luta em que um sujeito dá pauladas no outro com uma vara de bambu. Em Kyushu, no sul do país, Anami mantinha 570 mil homens à espera dos americanos. Ele também ordenara a convocação de 13 milhões de crianças e velhos que estavam sendo treinados às pressas para lutar.

O próprio imperador Hiroito assumira uma posição aparentemente contraditória: apoiava as iniciativas de paz dos embaixadores, mas também aplaudia os esforços militares de resistir à invasão, o que lhe daria melhores condições de negociar.

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Mas militares e políticos americanos tinham seus próprios problemas em aceitar a paz. A opinião pública apoiava a guerra total contra o Japão e exigia a rendição absoluta. O ataque à base militar de Pearl Harbor, no Havaí, em dezembro de 1941, quando 2,4 mil americanos morreram, não fora esquecido. Uma pesquisa do Instituto Gallup de 29 de junho de 1945 revelou que 70% dos americanos queriam o Japão destruído e o imperador Hiroito retirado do cargo e julgado como criminoso de guerra. Mais: a maior parte, 33%, queria a cabeça do homem. Harry Truman, sucessor de Franklin Roosevelt, reconhecia a importância dos números. Entre os documentos liberados recentemente pelo governo americano, há um bilhete do ex-secretário de Estado Cordell Hull dirigido ao presidente e datado do dia da partida de Truman para a Europa: “Concessões aos japoneses poderão causar repercussões políticas terríveis em casa”. Hull era um dos signatários de um estudo que a guerra contra o Japão poderia durar até 1946, ano de eleições para o Congresso.

Só que Truman tinha ainda outros números com que se preocupar. Desde que assumira, a quantidade de soldados mortos era quase a metade do total dos três anos de guerra do Pacífico. Em junho, os militares apresentaram um plano de invasão ao Japão. Seriam duas operações: a Olympic e a Coronet. O presidente pediu um cálculo das baixas na empreitada. A projeção do Pentágono foi de 220 mil soldados mortos e 150 mil feridos. “Depois da guerra, essas estimativas foram ‘corrigidas’ por Washington, primeiro para 500 mil e depois para um milhão de mortos à medida que se tornou preciso justificar a bomba atômica”, diz o historiador Samuel Walker, da Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos e autor de Prompt and Utter Destruction – Truman and the Use of Atomic Bombs Against Japan (Destruição total e imediata – Truman e a utilização das bombas atômicas contra o Japão, inédito no Brasil).

Para Walker, o maior empecilho para a paz com os japoneses estava longe do Japão. “Apesar da guerra continuar no oriente, em julho, duas semanas antes de Hiroshima, o foco de Truman era outro: ele estava em Potsdam, na Alemanha, onde se reuniria com os líderes da Grã-Bretanha e da União Soviética”, afirma. “Se ao sair dos Estados Unidos, Truman ainda tinha dúvidas, em Potsdam ele selou o destino de Hiroshima.” Na tarde do dia 16, Truman recebeu uma notícia que havia muito aguardava. Num ultra-secreto experimento no deserto do Novo México, militares e cientistas do projeto Manhattan realizaram com sucesso a primeira explosão nuclear. Truman não se conteve e durante o encontro com Churchill e Stálin, cochichou no ouvido do ditador soviético: “Temos um explosivo muito poderoso que iremos usar contra os japoneses e pôr fim à guerra”.

Segundo David S. Painter, professor de história da Universidade de Georgetown, em Washington, foi aí que nasceu a tese de que o ataque a Hiroshima foi um recado para Stálin. “Pôr a bomba em prática mostrou a Stálin que, apesar de ter vencido a guerra na Europa, levando sua influência a boa parte do continente, ele não ditaria as regras. E, do ponto de vista militar, a bomba atômica mostrou que havia algo mais poderoso que o Exército Vermelho”, diz Painter. “Não é à toa que muitos apontam a detonação da bomba – e não a construção do Muro de Berlim -, como o marco inicial da Guerra Fria.”

Não deixa de ser irônico: a Guerra Fria, o conflito velado entre americanos e soviéticos que marcou a segunda metade do século 20, começou com uma arma cujo núcleo chegou a 50 milhões de graus centígrados.

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– Três dias depois, a bomba em Nagasaki

Memorial de guerra

Em desenhos simples, vítimas eternizaram a tragédia

Eiji Horio
Idade na época: 32 anos
Distância da explosão: 5 km

8h15, dia 6
“Um flash de luz prata como se dezenas de milhares de câmeras tivessem sido disparadas ao mesmo tempo iluminou a área. Surpreso, eu virei e, no instante seguinte, ouvi um estrondo que parecia forte o suficiente para arrancar a Terra de seu eixo. Então, uma coluna gigante de fumaça subiu ao céu. Sirenes começaram a soar por toda a ilha enquanto o grande avião de bombardeio fugiu para o sul.”

Mitsuko Matsutomi
Idade na época: 13 anos
Distância da explosão: 1,2 km

Busca de Cursos

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9h10, dia 6
“Eu engatinhei desesperado para sair de baixo da minha casa. Alguns dos vizinhos estavam cambaleando pela rua com feridas enormes, com pedaços de pele pendurados pelo corpo. Outros eu nem reconheci, estavam sentados no chão, olhando para o nada. Ver as pessoas naquele estado vai além da nossa imaginação.”

Michie Matsushima
Idade na época: 17 anos
Distância da explosão: 450 metros

11h15, dia 6
“No meio de um monte de ruínas a gente via corpos queimados e inchados.”

Miyoshi Kokubo
Idade na época: 26 anos
Distância da explosão: 1,2 km

13h15, dia 6
“Vi os corpos carbonizados de uma mulher e de uma criança que pareciam que estavam tentando sair do bonde. Foi o que mais me impressionou.”

Yukiko Migitani
Idade na época: 22 anos
Distância da explosão: 1,7 km

17h, dia 6
“Entre as pessoas anônimas queimando, eu achei meu tio chamando minha tia com uma voz fraca. Ele deu seu último suspiro quatro horas depois.”

Yoshio Kawata
Idade na época: 23 anos
Distância da explosão: 2,3 km

6h30, dia 7
“Andei com a minha bicicleta pelas ruínas. No nariz, cheiros muito esquisitos.”

Katsuko Kuwamoto
Idade na época: 6 anos
Distância da explosão: 1,7 km

14h, dia 8
“Me lembro de ter seis anos de idade e estar procurando por minha mãe, que estava desaparecida. Vi um corpo com o rosto queimado todo vermelho e inchado, apenas a área ao redor dos olhos ainda era branca. Sob o sol do verão, o cheiro era insuportável.”

Sobreviventes relembram o dia mais longo de suas vidas

Yoshito Matsushige
Único fotógrafo a registrar o cenário desolador logo após a explosão da bomba.
Idade na época: 32 anos
Distância da explosão: 2.7 Km
“Eu tinha acabado de tomar café-da- manhã e me preparava para ir ao jornal onde trabalhava. De repente, o mundo ao meu redor ficou branco e brilhante, como se tivessem disparado um flash na minha cara. Depois, veio a explosão. A sensação era de centenas de alfinetes me penetrando ao mesmo tempo. Após cerca de 40 minutos, peguei minha câmera, vesti uma roupa que achei no meio dos escombros e saí para a rua. Na ponte Miyuki, encontrei estudantes do Colégio para Mulheres de Hiroshima, mobilizadas para derrubar casas. Estavam cobertas de queimaduras. Puxei minha câmera, mas não consegui apertar o botão. Eu tinha sofrido apenas ferimentos leves causados por estilhaços de vidro, e aquelas pessoas estavam morrendo. Hesitei por uns 20 minutos, até tomar coragem. Lembro que o visor da câmera ficou embaçado pelas minhas lágrimas. Endureci o coração para fotografar. Depois, vi um bonde queimando. Dentro estavam 15 ou 16 passageiros, mortos uns sobre os outros, com as roupas arrancadas. Meus cabelos arrepiaram e as minhas pernas tremeram. Caminhei para tirar uma foto. Não consegui. Havia outros fotógrafos lá, mas nenhum deles conseguiu fotografar. É uma pequeno consolo ter sido capaz de tirar pelo menos cinco fotografias que se tornaram registro daquela atrocidade”.

Ayako Motita
Estudante
Idade na época: 20 anos
Distância da explosão: 1.2 Km

“Posso até dizer que tive sorte dupla naquele dia. Eu trabalhava em um departamento do governo a 500 metros do epicentro da explosão. Mas, por estar doente, estava cumprindo o expediente em outro prédio, mais distante do local da bomba. E, no momento exato da explosão, eu tinha ido beber água. Longe da janela, fiquei protegida da radiação. Saí do prédio coberta de sangue por causa dos ferimentos causados pelos estilhaços de vidro e fui correndo para casa, que não estava mais lá. No caminho, vi uns meninos pendurando alguma coisa no corpo. Quando cheguei perto, percebi que seguravam a própria pele. Nos dias que se seguiram, diziam que viveríamos apenas dois anos, e que nenhuma planta nasceria em Hiroshima. Como o capim começou a crescer, pensamos que também sobreviveríamos. E sobrevivemos. Um ano depois, conheci meu marido e viemos para o Brasil. Estamos juntos há quase 60 anos e temos dois filhos saudáveis. Mas eu ainda sonho com aquele dia.”

Takashi Morita
Policial militar
Idade na época: 22 anos
Distância da explosão: 1.3 Km

“Eu estava levando 15 prisioneiros americanos para construírem um abrigo antiaéreo. Caminhávamos, quando senti uma luz nas minhas costas que me jogou uns 10 metros para frente. Depois, caiu uma chuva negra. Corri para o abrigo em construção e fui enviado pelo meu superior para saber o que estava acontecendo. Levei três horas para percorrer um quilômetro, vendo pelo caminho gente pegando fogo. A cena que mais marcou foi a de um bonde cheio de corpos carbonizados. Dava para ver a expressão de susto nos cadáveres. Eu já tinha presenciado o bombardeio a Tóquio meses antes, que matou muita gente, mas parecia bem pior. Os rios estavam cheios de corpos. Eu e meus colegas militares lutaríamos até a morte naquela guerra. Pode ser até que merecêssemos a morte. Nunca nos renderíamos aos americanos. Mas nossas mulheres e crianças não tinham nada a ver com isso.”

Robert Lewis
Co-piloto do enola gay. O depoimento foi tirado do seu diário de bordo.
Idade na época: 26 anos

“O clarão foi terrível. Quando viramos o avião e pudemos observar os resultados da nossa ação, vimos a maior explosão que o homem já testemunhou. Mais de 90% da cidade estava coberta de fumaça, e por uma coluna de nuvem branca que em menos de três minutos alcançou 30 mil pés. Tenho certeza que toda a tripulação experimentou uma sensação maior do que qualquer ser humano podia suportar. É impossível de compreender. Quantas pessoas nós matamos? Meu Deus, o que fizemos? Se eu viver 100 anos, nunca vou tirar aqueles poucos minutos da minha cabeça.”

Hiroshi Sawachika
Médico
Idade na época: 28 anos
Distância da explosão: 5.1 Km

“Eu tinha acabado de chegar no hospital e dizia ‘bom dia’ para as pessoas, quando um brilho vermelho invadiu a sala. Fiquei inconsciente por 30 segundos. Acordei atordoado e caminhei até a janela, de onde vi um cogumelo de fumaça perto da companhia de gás. Nesse momento alguém me chamou para atender feridos. Comecei a trabalhar, com a ajuda de enfermeiras e residentes. Aí ouvimos um barulho. Eram dezenas de pessoas caminhando na direção do hospital. Estavam queimadas e tinham vidros quebrados ou madeira no corpo. Pareciam fantasmas. Eu vi fantasmas. Uma hora, quando parei o trabalho para respirar, uma mulher grávida pegou na minha perna e disse: ‘Eu sei que vou morrer, mas posso sentir meu filho se mexendo. Se eu fizer o parto agora, ele se salva’. Mas não dava para fazer um parto aquela hora. Tudo que eu pude fazer foi dizer que voltaria. A imagem daquela mulher nunca saiu da minha cabeça. Naquele dia atendi 200 ou 300 pacientes. Foi o dia mais longo da minha vida.”

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Seis de agosto de 1945. Uma superbomba explode sobre o Japão, matando cerca de 100 mil pessoas. As repercussões daquela manhã mudariam as regras do jogo

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