Quantos vezes você já viu um mapa durante a sua vida escolar? Esse instrumento marca presença no cotidiano dos estudantes e impacta diretamente a nossa visão de mundo. Sabendo disso, os administradores das escolas públicas de Boston, nos Estados Unidos, tomaram uma decisão em março passado que movimentou as discussões sobre o ensino da Geografia. O clássico mapa de Mercator foi substituído pela versão de Gall-Peters. Mas você sabe o que isso significa?
Para que a Terra, com suas três dimensões, seja representada em um mapa, que tem apenas duas, é necessária uma projeção. O problema é que devido a essa adaptação dimensional todos os mapas apresentam alguma forma de distorção – nenhum deles, nunca, vai conseguir ser fiel à realidade.
A projeção de Mercator surgiu em 1569. Ela leva o nome de seu criador, o flamengo Gerardus Mercator. As maiores críticas em relação ao trabalho do cartógrafo é em relação às proporções. Enquanto na sua representação a forma dos continentes é preservada, os tamanhos são distorcidos drasticamente. Quer um exemplo? Nele, a Groenlândia, ilha de pouco mais de 2 milhões de quilômetros de área, fica maior do que a Oceania, que na realidade tem uma área de mais de 9 milhões km².
Ainda que o pensamento hegemônico do período transpareça na projeção, com o seu eurocentrismo, por exemplo, não podemos descontextualizá-la, como alerta a professora Sonia Castellar, professora livre docente em metodologia do ensino de Geografia da FE-USP. “A versão de Mercator leva em consideração a distância entre os lugares. Ele era o mapa de referência no período das grandes navegações, e até hoje é usado em aviação e navegação”, explica a docente. “No contexto da época”, ensina o professor Claudio Hansen, do Descomplica, “as pessoas tinham pouco conhecimento de mundo. As descobertas das grandes navegações é que iam construindo essa visão. Logo, o ‘mundo’ foi construído a partir da expansão europeia e, obviamente, os mapas retratavam esse contexto”.
Em 1973, o historiador alemão Arno Peters trouxe de volta à discussão uma projeção antiga, feita primeiramente pelo clérigo e astrônomo escocês James Gall. Ao contrário da técnica usada por Mercator, a versão popularizada por Peters se compromete com a área dos continentes, provocando distorções visualmente chocantes em seus formatos. À época de seu nascimento, ela foi apelidada de “terceiromundista”. “Peters queria mostrar a África. Há um aumento da importância dos países do hemisfério sul. Há essa ideia de que o ‘subdesenvolvido’ é menos, até em termos numéricos, mas quando você olha esse mapa, vê a força de um mundo que foi diminuído por Mercator”, diz a professora Christina Luciana do Carmo, do Curso Poliedro.
De acordo com o que Colin Rose, funcionário da administração das escolas públicas de Boston, disse para o jornal The Guardian, a adoção da projeção de Gall-Peters é “uma mudança de paradigma”. “É importante que os estudantes confiem no material escolar, mas também possam questioná-lo”, ponderou. A professora Christina argumenta que esse posicionamento é um contraponto ao atual processo político estadunidense, comandado por Donald Trump: “Ao usar uma projeção centrada na África, você pede para as pessoas verem o mundo de uma forma diferente e questiona o isolamento mundial, a visão de que os Estados Unidos se basta”. Ela também chama atenção para o fato de a mudança ter acontecido, justamente, em Boston – onde ficam o MIT e a Universidade de Harvard -, de acordo com a docente uma cidade com uma “força intelectual muito grande”.
Mas nada disso significa que nós devamos “demonizar” a projeção de Mercator, ok? Nós precisamos nos lembrar, principalmente, do contexto em que ele foi produzido. E também devemos ter sempre em mente que, afinal, um mapa não passa de uma representação do mundo e, como toda a representação, é influenciado por forças e interesses nem sempre imparciais. Interpretação não é só válida para textos.