“Dois irmãos” – Análise da obra de Milton Hatoum
Em estilo enxuto, mas repleto de sutilezas, romance narra a tumultuada relação de ódio entre dois irmãos gêmeos numa família libanesa que vive em Manaus
– Leia o resumo de “Dois irmãos”
A ruína de uma família
O romance “Dois Irmãos”, publicado em 2000, rompeu um silêncio de 11 anos que Milton Hatoum vinha mantendo desde “Relato de um Certo Oriente”, sua estreia como romancista. O autor costuma dizer, em entrevistas, que “cada livro nos ensina a escrever”. Se sua afirmação for levada ao pé da letra, nenhum livro lhe ensinou tanto quanto “Dois Irmãos”. Nessa obra, Hatoum demonstra grande domínio da técnica da ficção, num estilo mais enxuto que o da primeira obra e, ao mesmo tempo, repleto de nuanças e sutilezas.
A trama gira em torno da tumultuada relação entre dois irmãos gêmeos, Yaqub e Omar, em uma família de origem libanesa que vive em Manaus. Ao contar a história de dois irmãos que são inimigos um do outro, Hatoum reinventa um dos temas mais clássicos da literatura mundial. Assim, ele traz à tona histórias como a de Caim e Abel do Velho Testamento, e a de Pedro e Paulo do romance “Esaú e Jacó”, de Machado de Assis. Aliás, a referência ao texto de Machado é explícita em “Dois Irmãos”, pois a descrição de Rânia, que é apaixonada por seus irmãos, é a mesma que Machado utiliza para descrever Flora, que é apaixonada por Pedro e Paulo.
O ambiente que forma o pano de fundo da história é o de imigrantes que se dedicam ao comércio, numa cidade que vê aprofundar-se sua decadência, após o período de grande efervescência econômica e cultural vivido no início do século XX. A cidade de Manaus tem grande importância dentro da obra e sua história é contada pelo narrador juntamente com o desenrolar do enredo. As personagens estão intimamente ligadas ao meio em que vivem e a história de Manaus está intimamente ligada à de Halim. Ao longo dos trinta anos que se passam durante a narrativa, a cidade entra em decadência e é destruída, sendo novamente reconstruída. O narrador Nael procura a cidade em que vivia na infância, mas já não a reconhece mais porque ela não existe. Assim, ele se volta para o passado e recorre aos fatos contados por Halim para redescobrir Manaus.
Em certo momento do romance, acompanha-se a tristeza de Halim ao acompanhar a destruição da cidade flutuante. Este era um bairro que flutuava sobre o Rio Negro e era um espaço que trazia muitas lembranças e alegrias para Halim. Assim, acompanha-se a destruição gradual de Manaus juntamente com a ruína de Halim e sua família.
Narrador
O romance é narrado em primeira pessoa pelo narrador-personagem Nael, filho de Domingas. O objetivo que leva Nael a contar a história dos irmãos Yaqub e Omar é descobrir a identidade de seu pai. Durante toda a narrativa, ele busca conquistar e persuadir o leitor de forma que esse aceite o ponto de vista do narrador. Para tanto, ele utiliza um discurso muito mais racional do que emotivo, dando um tom de veracidade a seu depoimento.
Porém, o ponto de vista que ele adota é o de filho da empregada que foi explorada pela família e abusada. Além disso, ele tem um inconformismo por não ser reconhecido pela família de Halim e Zana como um membro dessa família, embora eles soubessem que na verdade ele o era. Assim, a narrativa dá margens ao leitor para interpretar os relatos de Nael como sendo fruto de uma perspectiva distorcida da realidade.
Tempo
A narrativa apresenta avanços e recuos no tempo, sem uma cronologia linear. Os problemas vão sendo revelados ao leitor aos poucos, conforme o narrador rememora fatos esclarecedores e os encadeia para solucionar (ou deixar em suspensão) os enigmas da história.
Comentário do professor
O professor Gabriel Félix, do Curso Pró-Master de Ponta Grossa (PR), reforça que é importante perceber que, em torno da história do ódio entre Yaqub e Omar, também aparecem outras histórias paralelas: a construção e a desagregação da família de Halim e Zana; a formação da identidade do narrador, Nael; a comunidade sírio-libanesa em Manaus; a evolução histórica de Manaus – da cidade dos pescadores das palafitas à moderna Manaus da Zona Franca; e os fatos da História do séc. XX repercutindo em Manaus, como, por exemplo, a II Guerra e a Ditadura Militar.
Quanto à linguagem empregada por Milton Hatoum nesse romance, o prof. Gabriel afirma que ele usou um estilo resultante da fusão de uma linguagem coloquial (sem rebuscamentos e com muitos termos regionais) a palavras árabes e indígenas. A convivência entre as culturas diferentes que há no enredo também se reflete na linguagem do romance, reforça o professor.
Porém, por mais que a ambientação regional possa sugerir que “Dois irmãos” seja classificado como um romance regionalista, deve-se tomar cuidado com isso, pois classificar esse livro assim é um raciocínio simplista demais, adverte o prof. Gabriel. Afinal, a trama central da obra – o ódio entre irmãos – é um tema universal, já registrado em textos importantes da nossa cultura, como a Bíblia Sagrada (Caim e Abel/Esaú e Jacó) e o romance Esaú e Jacó (Machado de Assis). Esse romance, portanto, não se limita à abordagem de aspectos puramente manauaras, conclui o professor.
Por fim, pensando-se na hora do vestibular, o prof. Gabriel adverte que, além dos aspectos de enredo e personagens, é preciso o candidato estar bem ciente das características gerais e da trajetória dos irmãos protagonistas, pois, entre as perguntas feitas sobre o romance, a mais comum consiste em “confundir” as características de Yaqub e Omar.