Em 1978, época marcada por uma série de protestos estudantis e greves, surgiu o primeiro volume da série “Cadernos Negros”, que contava com os poetas Henrique Cunha Jr., Angela Lopes Galvão, Eduardo de Oliveira, Hugo Ferreira, Celinha, Jamu Minka, Oswaldo de Camargo e Luiz Silva (Cuti). Desde então, foram sendo publicados anualmente um volume, alternando poemas e contos em estilos diversos. Através de um grande retorno do público e da crítica, com o passar dos anos a publicação pode crescer e atingir mais gente, tornando-se um importante veículo da literatura afro-brasileira.
Em 1982, data da publicação número 5 dos “Cadernos Negros”, as reuniões que tinham como objetivo discutir a publicação dos livros acabaram gerando o grupo Quilombhoje, com os poetas Clóvis Maciel, Luiz Silva (Cuti), Cunha, Márcio Barbosa, Esmeralda Ribeiro, Francisco Mesquita, Jamu Minka, José Alberto, Miriam Alves, Oubi Inaê Kibuko, Tietra e Regina Helena. Embora o grupo Quilombhoje tenha passado por diversas crises e alterações em sua formação, ele ainda está ativo e publicando os “Cadernos Negros”. Assim, através do Programa Nacional de Incentivo à Cultura do Ministério da Cultura (MinC), o grupo conseguiu lançar uma antologia com os melhores poemas e contos publicados nos volumes 1 ao 19 dos Cadernos, o que deu origem a dois livros: “Cadernos Negros: os melhores poemas” e “Cadernos negros: os melhores contos”.
As lutas por liberdade no continente africano, que levaram à independência de diversos países africanos de língua portuguesa, iniciadas na década de 1970 foram as maiores motivações para a criação dos “Cadernos Negros”. Assim, o maior objetivo presente nos livros iniciais (que fazem parte dessa coletânea lançada pelo MinC) era trabalhar a relação entre literatura e as motivações sócio-políticas. Assim, os poetas presentes nessas antologias deram voz à população negra em sua luta contra a desigualdade racial e social.
Através da literatura, pretendia-se incentivar uma visão crítica sobre a imagem do negro no Brasil, que era visto apenas como mão-de-obra, “coisa ruim” ou objeto sexual. Através dessa visão crítica dos preconceitos enraizados na sociedade brasileira, pretendia-se reverter a imagem negativa com que o negro aparecia na literatura nacional.
Por muitos anos, tentou-se demonstrar uma suposta inferioridade do negro em relação ao branco por meio da literatura ridicularizando características físicas, sociais e intelectuais dos escravos negros como forma de legitimar a escravidão. Porém, através da formação dos quilombos e tantos outros movimentos sociais ao longo da história, o negro brasileiro conseguiu perpetuar a cultura e religião africanas no Brasil. Há de se dizer, porém, que estes anos de exclusão e segregação social deixou inúmeras marcas na sociedade brasileira ainda hoje no século XXI. Dessa forma, dentro de uma sociedade que não consegue se admitir preconceituosa, o nascimento de uma literatura negra forte dá ao povo uma arma na luta contra a desigualdade racial e social.
Poemas representativos
“Outra nega fulô”, Oliveira Silveira
Através de uma paródia do poema “Essa nega Fulo”, do poeta modernista Jorge de Lima, o poeta Oliveira Silveira mostra uma mulher que não é mais submissa, mas sim ativa e consciente de seus direitos. Dentre outros poemas que também seguem essa linha feminista, podemos citar “Eu-mulher”, de Conceição Evaristo, e “É tempo de mulher”, de Cuti.
“Linhagem”, Carlos de Assumpção
Resgatando a figura de Zumbi, o último líder do Quilombo de Palmares (comunidade formada por escravos negros fugidos de fazendas, senzalas e prisões brasileiras e se localizava em uma área no interior da Bahia, mas que hoje pertence ao Alagoas), Carlos de Assumpção busca uma na ancestralidade do negro brasileiro a força de luta contra a repressão e desigualdade. O poeta Abelardo Rodrigues também relembra essa figura histórica no poema “Zumbi”, em que celebra o dia 20 de novembro, data em que se comemora o Dia da Consciência Negra e é a data de morte de Zumbi.
“Ejacoração”, Jamu Minka
A poesia erótica ganha grande papel libertador dentro da literatura negra. Se durante séculos os senhores de escravos saciavam seus desejos sexuais com escravas das senzalas, mas mantinham em segredo esse “fato vergonhoso”, agora através dessas poesias eróticas pode-se libertar o negro dessas amarras do moralismo sexual. Outros exemplos de poesia erótica em Cadernos Negros são “Mar Glu-Glu”, de Cuti, e “Safari”, também de Jamu Minka.
Comentário do professor
Comentário do prof. Deco Duarte, do Colégio Gregor Mendel.
A antologia “Cadernos negros”, lançada em 1998 — uma seleção daqueles considerados os melhores poemas nos vinte anos de publicação da série, surgida em 1978 — traz 51 textos de 21 autores, que versam, em sua maioria, sobre a condição de vida do negro brasileiro. Sendo uma obra engajada, “Cadernos negros” denuncia o preconceito e a segregação de que são vítimas os afrodescendentes. Poemas como “Efeitos colaterais”, de Jamu Minka, e “Quebranto”, de Cuti, mostram o discurso da falsa democracia racial bem como do preconceito introjetado, existentes no Brasil, e dos quais o próprio negro não consegue escapar. Seja no presente, seja no passado, a condição de marginalidade em relação ao poder é uma constante. Assim, afloram na obra textos que pensam a história do Brasil como a história da opresão da população negra. É o caso dos poemas “Em maio”, de Oswaldo de Camargo, e “Passado histórico”, de Sônia Fátima. É marcante ainda no livro a presença de textos que debatem a questão de gênero, repensando o papel da mulher — não necessariamente negra — em uma sociedade notadamente machista. “Rotina”, de Esmeralda Ribeiro, e “Eu-mulher”, de Conceição Evaristo, lembram esse lugar secundário, de vozes silenciadas que procuram se fazer ouvir.
Em que pese o caráter politizado presente na maioria dos textos da publicação, o fato de “Cadernos negros” ser uma coletânea dificulta uma homogeneidade entre os poemas, havendo ainda, na obra, textos de feições mais universais, como “Ejacoração”, do já citado Jamu Minka, que versa sobre a espera amorosa; ou mesmo “Vento”, de Landê Onawale, sobre a busca existencial. A obra, entretanto, traz na sua maioria textos em que o negro é o protagonista de sua vida (como em “Teimosa presença”, de Lepê Correia), buscando sua afirmação, valorizando sua história e sua cultura (como em “Crespitude”, de Jamu Minka, em que se valoriza o cabelo e o penteado afro) e lembrando seus heróis da luta e da resistência (como em “Zumbi” e “Mandela”, homenageados em poemas homônimos presentes no livro).