Ela garantiu 1000 na redação do Enem citando Sueli Carneiro
Nada de Platão ou Nietzsche: estudante citou pensadores vivos e que refletem sobre a realidade brasileira
Carina Beatriz de Souza Moura, de 18 anos, foi uma dos candidatos que garantiram uma nota 1000 na redação do Enem 2022. A estudante, aprovada em Medicina na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), escreveu uma dissertação-argumentativa de quatro parágrafos sobre o tema proposto na edição, “Desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil“.
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Carina foi na contramão do mito de que é preciso citar grandes nomes da filosofia clássica para se dar bem no texto. A jovem trouxe como principais referências dois filósofos contemporâneos: a brasileira Sueli Carneiro, e o português Boaventura de Sousa Santos.
A escolha de repertório da estudante é reflexo do que viu nas aulas da professora Fernanda Pessoa, da qual a jovem foi aluna durante o ano de vestibular, em Recife (PE). Como já contou ao GUIA DO ESTUDANTE, Fernanda defende a importância de sair da zona conforto na hora de citar pensadores na redação.
“Tem uma galera maravilhosa estudando Brasil neste exato momento, isso não pode ser em vão, temos que valorizar isso”, disse em entrevista ao GUIA, em fevereiro de 2022.
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Assim, para analisar a redação nota 1000 de Carina, nada melhor do que a própria Fernanda Pessoa. Leia abaixo o texto na íntegra da candidata e, em seguida, os comentários da professora sobre cada parágrafo do texto.
Introdução
Na segunda metade do século XVIII, os escritores da primeira fase do Romantismo elevaram, de maneira completamente idealizada, o indígena e a natureza à condição de elementos personificadores da beleza e do poder da pátria (quando, na verdade, os nativos continuaram vítimas de uma exploração desumana no momento em questão). Sem desconsiderar o lapso temporal, hoje nota-se que, apesar das conquistas legais e jurídicas alcançadas, a exaltação dos indígenas e dos demais povos tradicionais não se efetivou no cenário brasileiro e continua restrita as prosas e poesias do movimento romântico. A partir desse contexto, é imprescindível compreender os maiores desafios para uma plena valorização das comunidades tradicionais no Brasil.
Carina começou fazendo uma contextualização com o Romantismo e abordou o quanto houve uma visão idealizada a respeito dos povos indígenas, que sempre foram violentados. Na transição para a tese, percebe-se um cuidado em associar a abordagem da literatura à temática, o que faz com que seu projeto de texto comece a ser observado.
Ela fez alusão ao século 18 como início do Romantismo, o que corresponde ao começo do movimento artístico e cultural na Europa e à produção dos primeiros textos românticos (de transição do Arcadismo) aqui: “O Uraguai”, de Basílio da Gama, em 1769, e “Caramuru”, do Frei de Santa Rita Durão, em 1781.
De início, fiquei preocupada pois a data mais conhecida de início do Romantismo aqui é 1836, mas a forma como ela abordou deixou nítido o domínio do conteúdo. Na última parte da introdução, ela teve atenção em fazer uma tese implícita: “é imprescindível compreender os maiores desafios para uma plena valorização das comunidades tradicionais”. Um aspecto bem importante desse tipo de tese é o fato de o candidato precisar estar muito atento durante o texto para não haver fuga do raciocínio projetado.
Carina foi impecável nisso, o que se percebe nos parágrafos seguintes. Além disso, ela não errou nada de gramática nem de ortografia, e construiu períodos complexos na ordem indireta e com várias orações intercaladas.
Desenvolvimento 1
Nesse sentido, é inegável que o escasso interesse político em assegurar o respeito à cultura e ao modo de vida das populações tradicionais frustra a valorização desses indivíduos. Isso acontece, porque, como já estudado pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos, há no Brasil uma espécie de “Colonialismo Insidioso”, isto é, a manutenção de estruturas coloniais perversas de dominação, que se disfarça em meio a avanços sociais, mas mantém a camada mais vulnerável da sociedade explorada e negligenciada. Nessa perspectiva, percebe-se o quanto a invisibilização dos povos tradicionais é proposital e configura-se como uma estratégia política para permanecer no poder e fortalecer situações de desigualdade e injustiça social. Dessa forma, tem-se um país que, além de naturalizar as mais diversas invasões possessórias nos territórios dos povos tradicionais, não respeita a forma de viver e produzir dessas populações, o que comprova uma realidade destoante das produções literárias do Romantismo.
No primeiro parágrafo de desenvolvimento, o tópico central da estudante é a discussão sobre a omissão política em assegurar o respeito à cultura e ao modo de vida dos povos tradicionais, o que se associa diretamente ao que foi exposto na tese. Essa parte do texto é fundamental para que ela consiga construir uma argumentação forte e com autoria.
Para basear seu ponto de vista, Carina usou uma das teorias do sociólogo Boaventura de Sousa Santos sobre o “Colonialismo insidioso”, uma espécie de dominação em relação aos povos tradicionais, que ocorre hoje de maneira disfarçada.
Vejo um parágrafo maduro: há uso correto de todos os elementos de coesão, progressão de raciocínio, explicação do uso do repertório a partir de um grande estudioso atual e um fechamento de raciocínio, em que faz questão de associar o grave problema da desvalorização de povos tradicionais na atualidade à forma idealizada como esses povos eram tratados no passado. Para isso, a estudante retoma, de forma muito inteligente, o repertório do começo do texto.
Desenvolvimento 2
Ademais, é nítido que as dificuldades de promover um verdadeiro reconhecimento e valorização das comunidades tradicionais ascendem à medida que raízes preconceituosos são mantidas. De fato, com base nos estudos da filósofa Sueli Carneiro, é perceptível a existência de um “Epistemicídio Brasileiro” na sociedade atual; ou seja, há uma negação da cultura e dos saberes de grupos subalternizados, a qual é ainda mais reforçada por setores midiáticos. Em outras palavras, apesar da complexidade de cultura dos povos tradicionais; o Brasil assume contornos monoculturais, uma vez que inferioriza e “sepulta” os saberes de tais grupos, cujas relações e produções, baseadas na relação harmônica com a natureza, destoam do modo ocidental, capitalista e elitista. Logo, devido a um notório preconceito, os indivíduos tradicionais permanecem excluídos socialmente e com seus direitos negligenciados.
No segundo parágrafo de desenvolvimento, Carina discorre sobre a manutenção de raízes preconceituosas como sendo outro grave desafio que impede a valorização de povos tradicionais. Ela consegue voltar à tese com a abordagem associada ao que prometeu entregar ao corretor desde o começo do texto.
Para argumentar, faz uma homenagem brilhante a Sueli Carneiro, uma das maiores filósofas brasileiras da contemporaneidade. Carina abordou a teoria de Sueli sobre o “Epistemicídio brasileiro”, em que fala sobre a exclusão de saberes tradicionais a partir de uma padronização elitista e ocidentalizada.
Foi uma forma linda e inovadora de discussão, pois é muito comum que estudantes recorram aos mesmos repertórios sempre, o que mostra falta de originalidade.
Conclusão
Portanto, faz-se necessário superar os desafios que impedem a valorização das comunidades tradicionais no Brasil. Para isso, urge que o Poder Executivo – na esfera federal – amplie a verba destinada a órgãos fiscalizadores que visem garantir os direitos dos povos tradicionais e a preservação de seus territórios e costumes. Tal ação deve ser efetivada pela implantação de um Projeto Nacional de Valorização dos Povos Tradicionais, de modo a articular, em conjunto com a mídia socialmente engajada, palestras e debates que informem a importância de tais grupos em todos os 5.570 municípios brasileiros. Isso deve ser feito a fim de combater os preconceitos e promover o respeito às populações tradicionais. Afinal, o intuito é que elas sejam tão valorizadas quanto os índios na primeira fase da literatura romântica.
A conclusão, para muitos, é a parte mais delicada do texto devido ao cansaço. É preciso estar muito atento até o final. Para ser impecável, Carina resolveu elencar, de forma explícita e direta, todos os elementos obrigatórios para uma nota máxima na Competência 5: agente, ação, meio, efeito e detalhamento.
Ela retoma a problemática do tema para facilitar o raciocínio, expõe o agente responsável pela intervenção (Poder Executivo Federal), apresenta a ação (ampliação de verbas), mostra o meio usado para que a ação se efetive (implantação de um Projeto Nacional) e indica a finalidade (combater os preconceitos e promover o respeito aos povos tradicionais).
É excelente o fato de ela saber o quanto é importante detalhar de todas as formas para mostrar ao corretor conhecimento a respeito do que se fala. Notem: ela detalha apenas um pouco o agente e faz questão de construir um detalhamento completo do meio. Vale a pena lembrar que, pela tabela de correção do Enem, o corretor só contabiliza uma proposta de intervenção completa e detalhamento completo, ou seja, não há a necessidade de fazer várias propostas de intervenção.