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Análise: redação nota 1000 no Enem citou Jessé Souza e Immanuel Kant

Na proposta de intervenção, candidata citou o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos

Por Taís Ilhéu
25 out 2022, 18h22
Sociólogo Jesse Souza
O sociólogo Jessé Souza também foi presidente do Ipea ( Instituto de Pesquisa Econômicas e Aplicadas). (Marcelo Camargo/Reprodução)
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Citar um só pensador na redação do Enem já parece ser uma tarefa hercúlea: é preciso selecionar aquele que mais se relaciona com o tema e articular bem o exemplo – além, é claro, de acertar detalhes como a grafia do nome. Agora, imagine só citar três pensadores em um único texto? Foi isso que fez a candidata Mariana Mariah Idalgo da Costa. Em uma redação que lhe rendeu a nota mil, a candidata apresentou as ideias de Jessé Souza, Immanuel Kant e Thomas Marshall.

A partir do tema “Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil”, Mariana recorreu ao sociólogo brasileiro Jessé Souza logo na introdução para tratar do conceito de subcidadania. Nos parágrafos de desenvolvimento, a estudante falou sobre a ideia de “menoridade” de Kant e discorreu sobre a necessidade de exercer os direitos sociais, políticos e civis defendidos por Marshall.

Confira abaixo a redação de Mariana na íntegra. Logo em seguida, os comentários sobre o texto publicado na Cartilha do Participante – A redação do Enem 2022, onde a redação foi usada como exemplo.

Sob a perspectiva sociológica de Jessé Souza, o Brasil é majoritariamente formado por subcidadãos, visto que uma ampla parcela da população não usufrui plenamente de seus direitos. Essa subcidadania criticada pelo sociólogo é facilmente observada na invisibilidade de um vasto contingente de brasileiros que não possuem certidão de nascimento. Tal contexto excludente é motivado, sobretudo, pelo desconhecimento acerca das formas de obtenção do registro civil, resultando na restrição de um conjunto de garantias constitucionais. Assim, é fundamental a atuação governamental para o combate a esse atentado à cidadania.

Convém ressaltar, inicialmente, a influência da falta de informações na manutenção do grande número de brasileiros sem documentação pessoal. Nesse sentido, segundo o filósofo Immanuel Kant, a ausência de saberes configura um estado de “menoridade”, no qual os indivíduos não possuem autonomia para agir individualmente. Consoante esse pensamento, como uma significativa parcela da população desconhece as alternativas para a formulação de seu registro civil, ela se torna incapaz de buscar a posse dessa garantia fundamental. Tendo isso em vista, fica evidente que o enfrentamento à desinformação é crucial para a democratização das certidões de nascimento no Brasil e, consequentemente, para erradicar a subcidadania.

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Por conseguinte, a inexistência da identificação pessoal limita a consolidação de outros direitos imprescindíveis, perpetuando a invisibilidade e a supressão da cidadania de muitos habitantes do país. Nessa perspectiva, é lícito citar que, de acordo com o sociólogo Thomas Marshall, um verdadeiro cidadão deve exercer efetivamente suas garantias civis, sociais e políticas previstas constitucionalmente. Contudo, indo de encontro à definição de Marshall, a ausência do registro civil priva o indivíduo de gozar dos dois últimos direitos descritos, uma vez que, sem esse documento, ele não pode se cadastrar em programas de cunho social nem obter o título de eleitor. Dessa forma, é imperiosa a expansão do acesso a certidão de nascimento para que a condição cidadão efetivamente vigore no Brasil.

Portanto, urge que medidas de esclarecimento sejam tomadas pelo governo federal a fim de combater esse panorama de “pessoas invisíveis” no país. Para isso, com o objetivo de informar a população carente sobre as formas de receber seu registro civil, cabe ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos – órgão responsável pela implementação de políticas referentes às minorias sociais – organizar comitivas de funcionários para visitar as casas dessa parcela populacional e abordar os caminhos de se obter essa documentação. Isso deve ser feito por meio de pesquisar que localizem as principais áreas onde há carência de certidões e os visitantes devem ser psicólogos que trabalhem com grupos sociais com poucos recursos financeiros, para que saibam usar uma linguagem adequada para informá-los. A partir disso, será possível alcançar a cidadania descrita por Marshall.

Análise do Inep

A participante demonstra excelente domínio da modalidade escrita formal da língua portuguesa, uma vez que a estrutura sintática é excelente e há presença de apenas um desvio. No segundo parágrafo, observa-se um desvio de regência no trecho “… o enfrentamento à [da] desinformação é crucial para a democratização”.

A participante demonstra excelente domínio do texto dissertativo-argumentativo. Ela apresenta introdução em que se inicia a discussão, desenvolvimento com justificativas que comprovam seu ponto de vista e conclusão que encerra a discussão. O tema é abordado de forma completa já no primeiro parágrafo, no qual a participante afirma que grande parcela da população não usufrui de seus direitos porque não possui certidão de nascimento. Com relação à utilização de repertório sociocultural de maneira produtiva e pertinente à discussão, observa-se que isso ocorre já no primeiro parágrafo, no qual a participante parte do pensamento do sociólogo Jessé Souza para apontar a existência de subcidadãos, sem registro civil, no Brasil. No segundo parágrafo, utiliza-se o pensamento de Immanuel Kant para discutir que, sem informações sobre a importância do registro civil, a população não possui autonomia para agir. Já no terceiro parágrafo, para tratar das consequências da falta de registro civil, a participante faz uso do pensamento do sociólogo Thomas Marshall para contrapô-lo à situação observada no Brasil, na qual pessoas sem registro não podem usufruir de seus direitos de cidadão. Por fim, para ilustrar o objetivo da proposta de intervenção sugerida, a participante retoma o conceito de cidadania de Thomas Marshall.

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Percebe-se, também, ao longo da redação, a presença de um projeto de texto estratégico, com informações, fatos e opiniões relacionados ao tema proposto, desenvolvidos de forma consistente e bem-organizados em defesa do ponto de vista. A participante inicia apresentando o problema que pretende discutir – que, no Brasil, uma parcela da população, por não ter registro civil, não pode usufruir de seus direitos, configurando a subcidadania –, sua causa – o desconhecimento sobre como obter o registro – e a solução para esse problema – atuação governamental. No parágrafo seguinte, a participante discute, então, de que forma a falta de informação impede o registro dessa parcela da população. Já no terceiro parágrafo, aprofunda-se a discussão sobre a necessidade de se buscar esse registro para a garantia do acesso à cidadania de toda a população. Por fim, no último parágrafo, a participante propõe soluções para o problema apontado, sugerindo a promoção de campanhas de informação comandadas pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos com o intuito de promover o registro civil.

Quanto à coesão, observa-se, nessa redação, um repertório diversificado de recursos coesivos, sem inadequações. Há articulação tanto entre os parágrafos (“Por conseguinte”, “Portanto”) quanto entre as ideias dentro de um mesmo parágrafo (como “visto que”, “seus direitos”, “essa subcidadania”, “Tal contexto”, “sobretudo”, “acerca de”, “Assim”, “esse atentado”, no 1º parágrafo; “Nesse sentido”, “segundo”, “no qual”, “Consoante esse pensamento” “seu registro civil” “ela”, “dessa garantia”, “isso”, “consequentemente”, no 2º parágrafo; “Nessa perspectiva”, “de acordo com”, “suas garantias civis”, “Contudo”, “uma vez que”, “esse documento”, “Dessa forma”, “para que”, no 3º parágrafo; e “a fim de”, “esse panorama”, “Para isso”, “a fim de”, “dessa parcela populacional”, “essa documentação”, “por meio de”, “onde” “para que”, “los” – em “informá-los” –,“A partir disso”, no 4º parágrafo).

Por fim, a participante elabora proposta de intervenção muito boa: concreta, detalhada, articulada à discussão desenvolvida no texto e que respeita os direitos humanos. A proposta apresentada sugere que se organizem comitivas de funcionários do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos para visitar a população sem registro civil e informá-la sobre como conseguir o registro civil.

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