O estudante Gabriel Borges foi um dos 22 candidatos que alcançaram a nota 1000 na redação do Enem 2021. O jovem de 22 anos é gaúcho e professor de redação. Por isso, está habituado a fazer o exame há alguns anos. Em entrevista ao GZH, Gabriel conta que esta edição, que teve como tema “Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil”, lhe rendeu a primeira nota mil.
“Quando entreguei os textos nas duas últimas edições do Enem, eu sabia que estavam muito bons, mas sabia que a redação nota mil tinha também esse quesito que é quase sorte. É como se, além de ter feito um texto perfeito, os astros também tivessem que estar alinhados. Isso pode estar ligado ao fato de que sempre há subjetividade por trás da avaliação e da escrita”, avalia o professor.
Se também houve uma pitada de sorte não há como saber, mas o fato é que Gabriel construiu um texto dissertativo-argumentativo bem estruturado e seguindo todos os requisitos estipulados pela banca. Como repertório, citou o cientista político Norberto Bobbio e Karl Marx. Também exemplificou o tema a partir do livro “Vidas Secas“, de Graciliano Ramos.
Confira abaixo a redação de Gabriel Borges na íntegra. Logo em seguida, os comentários sobre o texto publicado na Cartilha do Participante – A redação do Enem 2022, onde a redação foi usada como exemplo.
Norberto Bobbio, cientista político italiano, afirma que a democracia é um processo que tem, em seu cerne, o objetivo de garantia a representatividade política de todas as pessoas. Para que o mecanismo democrático funcione, então, é fundamental apresentar uma rede estatal que dê acesso a diversos recursos, como alimentação, moradia, educação, segurança, saúde e participação eleitoral. Contudo, muitos brasileiros, por não terem uma certidão de nascimento, são privados desses direitos básicos e têm seus próprios papéis de cidadãos invisibilizados. Logo, deve-se discutir as raízes históricas desse problema e as suas consequências nocivas.
Primeiramente, vê-se que o apagamento social gerado pela falta de registro civil apresenta suas origens no passado. Para o sociólogo Karl Marx, as desigualdades são geradas por condições econômicas anteriores ao nascimento de cada ser, de forma que, infelizmente, nem todos recebam as mesmas oportunidades financeiras e sociais ao longo da vida. Sob esse viés, o materialismo histórico de Marx é válido para analisar o drama dos que vivem sem certificado de nascimento no Brasil, pois é provável que eles pertençam a linhagens familiares que também não tiveram acesso ao registro. Assim, a desigualdade social continua sendo perpetuada, afetando grupos que já foram profundamente atingidos pelas raízes coloniais e patriarcais da nação. Dessa forma, é essencial que o governo quebre esse ciclo que exclui, sobretudo, pobres, mulheres, indígenas e pretos.
Além disso, nota-se que esse processo injusto cria chagas profundas na democracia nacional. No livro “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, é apresentada a história de uma família sertaneja que luta para sobreviver sem apoio estatal. Nesse contexto, os personagens Fabiano e Sinhá Vitória têm dois filhos que não possuem certidão de nascimento. Por conta dessa situação de registro irregular, os dois meninos sequer apresentam nomes, o que é impensável na sociedade contemporânea, uma vez que o nome de um indivíduo faz parte da construção integral da sua identidade. Ademais, as crianças retratadas na obra são semelhantes a muitas outras do Brasil que não usufruem de políticas públicas da infância e da adolescência devido à falta de documentos, o que precisa ser modificado urgentemente para que se estabeleça uma democracia realmente participativa tal qual aquela prevista por Bobbio.
Portanto, o registro civil deve ser incentivado de maneira mais efetiva no país. O Estado criará um mutirão nacional intitulado “Meu Registro, Minha Identidade”. Esse projeto funcionará por meio da união entre movimentos sociais, comunidades locais e órgãos governamentais municipais, estaduais e federais, visto que é necessária uma ação coletiva visando a consolidação da cidadania brasileira. Com o trabalho desses agentes, serão enviados profissionais a todas as cidades em busca de pessoas que, finalmente, terão suas certidões de nascimento confeccionadas, além de receberem acompanhamento e incentivo para a realização de cadastro em outros serviços importantes do sistema nacional. Por conseguinte, o Brasil estará agindo ativamente para reparar suas injustiças históricas e para solidificar sua democracia, de maneira que os seus cidadãos sejam vistos igualmente.
Comentário do Inep
O participante demonstra excelente domínio da modalidade escrita formal da língua portuguesa, uma vez que a estrutura sintática é excelente e o texto não apresenta desvios de escrita. Em relação aos princípios da estruturação do texto dissertativo-argumentativo, percebe-se que o participante apresenta introdução em que expõe seu ponto de vista, desenvolvimento de justificativas que comprovam esse ponto de vista e conclusão que encerra a discussão, demonstrando excelente domínio do texto dissertativo-argumentativo. Além disso, o tema é abordado de forma completa, o que revela uma leitura cuidadosa da proposta de redação: logo no primeiro parágrafo, o participante apresenta o tema ao relacionar a falta de certidão de nascimento à ausência de direitos básicos e à invisibilização dos indivíduos. Observa-se também o uso produtivo de repertório sociocultural pertinente à discussão proposta pelo participante em mais de um momento do texto. O participante inicia seu texto com a ideia de Norberto Bobbio, para quem o objetivo da democracia é garantir a representação de todos, e afirma que, para que isso ocorra, o Estado deve promover diversos direitos aos cidadãos, o que não acontece quando um indivíduo não tem uma certidão de nascimento. No segundo parágrafo, ao discutir as raízes históricas da invisibilidade causada pela falta de acesso ao registro civil, o participante refere-se às ideias de Karl Marx, que afirma que as desigualdades estão relacionadas a condições econômicas anteriores ao nosso nascimento. Já no terceiro parágrafo, a discussão sobre a falta de acesso aos direitos básicos devido à ausência de registro civil é relacionada com o livro “Vidas Secas”, já que na obra há referência a personagens que não têm nome ou registro.
Percebe-se, também, ao longo da redação, a presença de um projeto de texto estratégico, com informações, fatos e opiniões relacionados ao tema proposto, desenvolvidos de forma consistente e bem-organizados em defesa do ponto de vista. No início do texto, o participante, após apresentar o tema que pretende discutir – a ausência de registro civil e, consequentemente, do acesso a direitos básicos –, propõe que sejam analisadas as raízes históricas do problema apontado e suas consequências. Ao longo do texto, percebe-se que esse plano inicial foi cumprido com êxito. No segundo parágrafo, discute-se que a invisibilidade decorrente da falta de registro tem suas origens no passado, uma vez que existe uma grande probabilidade de aqueles que não possuem documento hoje em dia pertencerem a famílias em que o registro nunca foi uma realidade. Nesse ponto, o participante apresenta também a necessidade de uma ação por parte de governo para que essa realidade mude, o que será retomado em sua conclusão. Já no terceiro parágrafo, ele apresenta as consequências nocivas da falta de registro, que estão associadas à ausência de apoio estatal e de acesso a políticas públicas. A conclusão, então, aponta as soluções para a falta de documentos por parte da população brasileira, o que garantirá a reparação das injustiças históricas e a solidificação da democracia, conceitos que foram trabalhados ao longo
do texto.
Em relação à coesão, encontra-se, nessa redação, um repertório diversificado de recursos coesivos, sem inadequações. Há articulação tanto entre os parágrafos (“Além disso” e “Portanto”) quanto entre as ideias dentro de um mesmo parágrafo (1º parágrafo: “Para que”, “então”, “Contudo”, “desses direitos”, “Logo”, “suas consequências”; 2º parágrafo: “de forma que”, “Sob esse viés”, “pois”, “também”, “Assim”, “Dessa forma”, “esse ciclo”, “sobretudo”; 3º parágrafo: “esse processo”, “Nesse contexto”, “Por conta de”, “uma vez que”, “Ademais”, “devido a”, “tal qual”; 4º parágrafo: “por meio de”, “visto que”, “desses agentes”, “além de”, “Por conseguinte”, “seus cidadãos”, entre outros).
Por fim, o participante elabora proposta de intervenção muito boa: concreta, articulada à discussão desenvolvida no texto, detalhada e que respeita os direitos humanos. Ele propõe que o Estado promova um mutirão, em que profissionais enviados a todas as cidades buscarão aqueles que não têm registro civil para que possam ter acesso ao documento e para que sejam incentivados a se cadastrarem em outros serviços, o que possibilitará reparar as injustiças sociais e promover a democracia, como apontado anteriormente.
Veja a correção de outras redações nota 1000
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