Desigualdade Racial: O racismo revelado pelas redes sociais
por Maria Fernanda Teperdgian
O RACISMO REVELADO PELAS REDES SOCIAIS
No Brasil, casos de intolerância racial com personalidades negras pela internet reforçam a necessidade do debate sobre a desigualdade
Recentemente, três situações de racismo pelas redes sociais ganharam destaque na imprensa. Em julho e outubro do ano passado, a jornalista Maria Júlia Coutinho, a Maju, e a atriz Taís Araújo, respectivamente, foram alvos de comentários racistas no Facebook. Em maio deste ano, a cantora Ludmilla também sofreu ofensas que foram publicadas em uma das suas redes sociais na internet. Os casos são semelhantes entre si: perfis falsos nas redes sociais ofendem as três personalidades com comentários preconceituosos como “cabelo de esfregão” e “macaca”.
Em relação à jornalista Maju, o Ministério Público solicitou à Promotoria de Investigação Penal que acompanhasse o caso junto à Delegacia de Repressão a Crimes de Informática (DRCI), responsável por investigar todos os crimes ocorridos na internet. Integrantes de quatro grupos foram identificados como suspeitos de publicarem as ameaças racistas. O relatório da promotoria listou mensagens postadas na página do Facebook do Jornal Nacional contra a apresentadora, e mantiveram os 25 pedidos de busca e apreensão que foram cumpridos em oito estados. No caso da atriz Taís Araújo, cinco pessoas que fazem parte de um mesmo grupo foram detidas em uma operação policial.
Intolerância nas redes sociais
Os episódios exemplificam como a internet tem servido de palco para o ódio às diferenças. As manifestações de racismo e injúria racial nas redes sociais (veja a diferença entre os crimes no boxe ao lado) escancaram a realidade preconceituosa que ainda existe no Brasil, alimentadas pela ideia de que a internet seria um território sem lei: um espaço público em que cada um pode falar o que quiser. Sob a proteção do anonimato, muitos agressores criam perfis falsos para deixar registros de incitação ao ódio e comentários de cunho racista nas redes sociais.
É possível ter uma dimensão da amplitude desse problema a partir dos dados da Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos (Safernet). A organização desenvolveu um sistema automatizado para registrar as denúncias, que permite ao internauta acompanhar, em tempo real, cada passo do andamento das ocorrências. Em dez anos, a Safernet recebeu 525.311 denúncias anônimas de racismo envolvendo 81.732 páginas distintas, das quais apenas 18.287 foram removidas. De 2006 para 2015, o número de denúncias anual saltou de 25.690 para 55.369, mais do que o dobro na taxa de aumento (115%).
Se o anonimato da internet cria um terreno fértil para a proliferação de crimes de incitação ao ódio, a impunidade pavimenta o caminho para que os agressores saiam ilesos. No caso da atriz Taís Araújo, houve uma resposta rápida da Justiça, com a detenção dos acusados. Mas, a despeito das mobilizações recentes do Ministério Público e da Polícia Civil para não deixar esses casos impunes, o sistema não tem respondido com a mesma agilidade para todo o conjunto da sociedade. Muitas vítimas, descrentes na eficácia da Justiça para esse tipo de crime ou mesmo por desconhecer as vias judiciárias, não se dão ao trabalho de prestar queixa na delegacia – o que só agrava o problema.
A DIFERENÇA ENTRE RACISMO E INJÚRIA RACIAL
De modo geral, pode-se dizer que o racismo é a manifestação de um preconceito contra toda a raça, enquanto a injúria racial é dirigida a uma pessoa ou a um grupo específico.
O crime de injúria racial está previsto no artigo 140, parágrafo 3º, do Código Penal e consiste em ofender a dignidade de alguém “na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”. A pena pode chegar a três anos de prisão.
Já nos casos em que há racismo – classificado como conduta discriminatória ou segregacionista dirigida a um determinado grupo – os acusados podem responder pelos crimes previstos na lei 7.716, que é de 1989. Há várias penas possíveis para racismo, como multa e prisão de até cinco anos, dependendo da gravidade do ato cometido. O crime de racismo não prescreve e também não tem direito à fiança.
A cultura da diferença
É inegável que os ataques racistas contra personalidades midiáticas deram maior visibilidade para o problema. Mas a questão de forma alguma está restrita ao campo das celebridades ou mesmo às redes sociais. O racismo, observado diariamente em situações cotidianas, é parte de um problema muito mais abrangente: a desigualdade racial. No Brasil, os negros vivem em situação de desvantagem socioeconômica em relação aos brancos, são vítimas de um longo processo histórico.
Os primeiros escravos chegaram ao Brasil no século XVI – estima-se que, entre 1550 e 1850, tenham chegado ao Brasil 4 milhões de negros trazidos do continente africano. A escravidão no Brasil foi abolida em 1888, pela Lei Áurea, após uma longa luta abolicionista. Os negros libertos não tinham renda ou moradia, não receberam educação formal e eram vistos e tratados como uma raça inferior, preguiçosa e incapaz. Excluídos do mercado de trabalho e da vida social, milhares deixaram cidades e fazendas e deram origem a comunidades quilombolas em terras devolutas. A política de trazer imigrantes europeus para trabalhar na indústria recente e nos cultivos de café, no final do século XIX e início do XX, contribuiu para estigmatizar ainda mais os ex-escravos e excluí-los do sistema produtivo e econômico do país.
Pela legislação brasileira, o racismo é crime desde 1989, quando entrou em vigor a chamada Lei Caó – em referência ao deputado e ativista do movimento negro Carlos Alberto de Oliveira. Em 2010, foi sancionado o Estatuto da Igualdade Racial, um marco jurídico de combate à desigualdade e à discriminação. Composto de 65 artigos, o Estatuto trata de políticas de igualdade na educação, cultura, lazer, saúde e trabalho, além da defesa de direitos das comunidades quilombolas.
Para cada não negro vítima de homicídio entre 2004 e 2014, 2,4 negros foram mortos no Brasil
Indicadores da desigualdade
Utilizamos a palavra “negros” para designar pretos e pardos, que são os termos adotados pelo Instituto Brasileiro de Geografa e Estatística (IBGE). Divulgado em dezembro do ano passado, a Síntese de Indicadores Sociais mostra que, em 2014, 53,6% da população era negra. No entanto, mesmo sendo maioria, eles possuem menos oportunidades na sociedade. Veja os indicadores abaixo:
- Educação: do total de estudantes negros, entre 18 e 24 anos, 45,5% cursavam o Ensino Superior em 2014, ante 18,9% em 2005. Para a população branca, essa proporção passou de 51,5%, em 2005, para 71,4%, em 2014.
- Renda: de acordo com a Pesquisa Mensal de Emprego (PME) realizada pelo IBGE no final de 2015, o rendimento dos negros chega a apenas 59,2% do valor recebido pelos brancos.
- Desigualdade: em 2014, os negros representavam 76% das pessoas entre a parcela dos 10% com os menores rendimentos. Já no 1% mais rico, correspondiam a 17,4%. Mesmo com o crescimento da proporção de pretos ou pardos no topo da distribuição de renda (eram 12,5% em 2004), persiste uma grande diferença em relação aos brancos, que chegavam a quase 80% no extrato de 1% mais rico, em 2014.
- Representação social: os negros ocupam apenas 20,7% da Câmara dos Deputados. No Senado, são só 7 negros entre os 81 representantes (8,6%). No Poder Judiciário não é diferente: de acordo com o Conselho Nacional de Justiça, em 2014, 14% dos magistrados se declararam pardos e 1,4% pretos.
- Violência: O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) lançou, em 2016, o Atlas da Violência. O estudo revela que, entre 2004 e 2014, houve alta na taxa de homicídio de negros (18,2%) enquanto a de não negros caiu 14,6%. Para cada não negro vítima de homicídio nesse período, 2,4 negros foram mortos.
O Brasil abriga a maior população negra fora da África. O alto índice de miscigenação entre os brasileiros não inibe o preconceito e a exclusão social. A discriminação cria um ciclo vicioso entre a cor da pele e a condição social: o negro tem menos oportunidades de estudo e de conseguir um trabalho de Para cada não negro vítima de homicídio entre 2004 e 2014, 2,4 negros foram mortos no Brasil qualidade; é mal remunerado e forçado a viver em bairros mais precários, nos quais é vítima de violência, de prisão injustificada e morte.
Políticas públicas
É contra as diferenças estruturais entre brancos e negros que são propostas ações afirmativas: medidas institucionais, públicas ou privadas, que têm por objetivo oferecer a igualdade de oportunidades e de tratamento a qualquer grupo social discriminado. No Brasil, uma das principais ações afirmativas é a reserva de cotas raciais.
A primeira lei de cotas é referente à educação e leva em conta tanto a cor quanto a condição social do aluno. Sancionada em 2012 pela presidente Dilma Roussef, a lei beneficia negros e indígenas. Estabelece que todas as universidades federais devem reservar 50% de suas vagas para estudantes que tenham cursado o Ensino Médio em escolas públicas a partir deste ano (2016). Metade dessas vagas deve ser ocupada por alunos de famílias com renda per capita inferior a 1,5 salário mínimo. As vagas destinadas a negros e indígenas obedecem o percentual desses grupos em cada estado. Antes mesmo da lei, algumas universidades públicas estaduais e federais já haviam estabelecido cotas sociais e raciais sob diferentes critérios, embora a lei federal não se imponha a governos estaduais e municipais.
As cotas levantaram polêmica: para os críticos, essas medidas poderiam ser apenas socioeconômicas e esconderiam o verdadeiro problema, que é a baixa qualidade de educação do país. Outro argumento era de que o ingresso de estudantes por cotas e não por mérito poderia resultar na queda da qualidade do Ensino Superior. No entanto, diversos estudos mostram uma equivalência de notas no desempenho de cotistas e não cotistas. É o que aponta o acompanhamento dos cotistas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e na Universidade de Brasília (UnB), pioneiras em adotar cotas para índios e negros, respectivamente, desde 2003.
Em 2014, foi sancionada a lei federal que reserva cotas de 20% para negros, nas vagas de concursos públicos para cargos da administração federal, de autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista. Como no caso das cotas em vigor no Ensino Superior, nestas também se enquadram como candidatos as pessoas que se autodeclaram pretas ou pardas.
Desigualdade racial
PASSADO ESCRAVOCRATA Os negros são alvo de discriminação principalmente em países colonizados por europeus e que escravizaram negros entre os séculos XVI e XIX. Estima-se que o Brasil tenha recebido mais de 4 milhões de escravos africanos entre 1550 e 1850. Em 1888, o Brasil abole a escravatura, mas deixa os negros à margem da sociedade, sem qualquer medida compensatória ou de apoio à integração social.
DISCRIMINAÇÃO Existem, proporcionalmente, mais negros no Brasil do que o conjunto restante da população, que soma brancos, amarelos e indígenas. A população negra (pretos e pardos autodeclarados pelo Censo) soma 53,6% do total. No entanto, a diferença é marcante na desvantagem da população negra em sua participação na educação, pobreza, salários e nos números da violência. A representatividade dos negros na Câmara dos Deputados, no Senado Federal e no Judiciário é bem inferior à dos brancos.
RACISMO NA INTERNET Casos recentes de ofensas racistas pelas redes sociais contra a jornalista Maria Júlia Coutinho, a atriz Taís Araújo e a cantora Ludmilla, mostram como a internet vem servindo de palco para essas manifestações de ódio. Pela legislação brasileira, o racismo é crime desde 1989. Mas, sob a proteção do anonimato, muitos agressores criam perfis falsos para deixar comentários de cunho racista nas redes sociais sem serem identificados. A excessiva burocratização e a impunidade são obstáculos para coibir esse tipo de crime.
AÇÕES AFIRMATIVAS São políticas públicas que visam oferecer igualdade de oportunidades a grupos sociais discriminados. No caso da população negra, as ações adotadas pretendem reduzir a desigualdade que ela herda desde a colonização. As universidades federais reservam, por lei, cotas para negros e indígenas que cursaram Ensino Médio em escola pública. A política é criticada pelos que defendem cotas apenas pelo perfil de renda e não associadas à cor da pele.