O Judiciário e o conflito entre poderes
Com as dificuldades institucionais que vive o país, a Justiça tem a incumbência de garantir o respeito às leis e à Constituição
por Décio Trujilo
No Brasil de hoje, o Poder Judiciário não sai das manchetes. Os rostos de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), como Alexandre de Moraes, Rosa Weber ou Gilmar Mendes, estampam jornais, revistas, noticiários de TV e sites noticiosos, e são conhecidos por milhões de pessoas. Isso poderia ser sinônimo de popularidade, mas, de fato, parece expressão do elevado grau de conflito que atinge as instituições brasileiras.
É como se os três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – não conseguissem se conter em seus limites institucionais. Em vez de harmonia, vê-se por vezes disputas, braços-de-ferro e críticas entre os seus representantes. A tensão constante se dá pelas desavenças sobre até que ponto vão as atribuições de cada Poder. Por isso, as disputas viram notícias de interesse de todo o país.
O conflito do “marco temporal”
Um exemplo é a discussão do chamado “marco temporal” das terras indígenas, cujo julgamento está em curso pelo Judiciário, mas que também é objeto de um projeto lei que tramita com barulho no Congresso Nacional. Desde 2000, uma parte dos deputados e senadores tentam determinar que o direito à terra pelos povos originários do Brasil deve valer apenas quando as áreas que reivindicam estavam ocupadas na data da promulgação da Constituição Federal, ou seja, em 5 de outubro de 1988.
De outro lado, os próprios indígenas, além de estudiosos, defensores dos direitos humanos e do meio ambiente e parte dos parlamentares, defendem que o direito à terra deve considerar a história de povos que foram expulsos pela força da violência ao longo dos séculos. Portanto, tais áreas, ou parte delas, podem ser legitimamente ocupadas ou devolvidas a seus ocupantes originais.
Corre no STF uma ação relativa ao povo xokleng, de Santa Catarina, que, há séculos, ocupava áreas que iam do Rio Grande do Sul ao Paraná, e hoje limita sua presença ao município de Ibirama, em Santa Catarina. Nos anos 1970, parte da área ocupada pelos indígenas foi inundada por uma represa, e até hoje corre a ação para que possam receber a compensação de uma reserva demarcada. O governo catarinense se opõe a isso. A tendência da Corte Suprema, amparada na interpretação da Constituição sobre o tema, é dar razão aos indígenas. Sendo uma decisão do STF, a decisão valeria para todas as terras em situação semelhante no Brasil.
Essa possibilidade contraria os interessantes dos ocupantes de áreas usadas para agricultura e pecuária pelo país, além de invasores e especuladores. Eles então mobilizaram parlamentares aliados para criar um projeto de lei que, se aprovado, integra à legislação a tese do “marco temporal”. A proposta já passou pela Câmara Federal e aguarda a tramitação no Senado. Se for aprovada pelo Legislativo, e o STF julgar que é inconstitucional, pode-se abrir uma crise entre os poderes.
Parlamentares apoiadores da tese já declararam que não caberia ao Supremo determinar o que o Legislativo pode ou deve fazer. Mas o ponto é que esta é justamente uma das obrigações do STF: fazer cumprir a Constituição e derrubar leis que a desrespeitem. No segundo semestre de 2023, estão previstos tanto a votação no Congresso quanto a conclusão do julgamento do caso no Supremo. Caso as duas decisões sejam conflitantes, pode haver um julgamento específico a respeito da validade da nova lei.
Crise institucional
Na divisão dos três poderes republicanos, independentes mas vigilantes entre si, o papel do Judiciário é garantir o respeito ao que está determinado na Constituição brasileira e nas leis, para preservar os direitos individuais e coletivos, públicos e privados (veja abaixo como se estrutura o Poder Judiciário).
Houve, porém, um acirramento de conflitos institucionais nos últimos anos, após o polêmico impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), e sobretudo após a ascensão à Presidência de Jair Bolsonaro (PL) – cuja marca no governo era de afirmar constantemente os seus poderes, como chefe do Executivo, buscando ampliá-los, confrontando tanto o Legislativo quanto o Judiciário.
O edifício do Judiciário vem então sofrendo abalos, que colocaram todo o sistema jurídico como alvo de ataques, suspeitas e fake news por parte de detratores, com destaque para três aspectos:
+ os danos públicos provocados pela agressividade de Bolsonaro contra as instâncias do Judiciário, em especial em ações que buscavam abrir caminho para agressões ao regime democrático;
+ o comportamento inicialmente louvado e depois condenado da Operação Lava Jato, que lançou suspeitas sobre a atuação da Justiça brasileira como um todo;
+ a mudança no comportamento dos ministros do STF, que passaram a se tornar figuras públicas em evidência, quando antigamente se pautavam pela discrição.
Os ataques desferidos pelo ex-presidente Bolsonaro e seus apoiadores começaram antes mesmo de sua posse. Em outubro de 2018, poucos dias antes do 2º turno da eleição que o levou à Presidência da República, circulou amplamente um vídeo feito três meses antes, em que um de seus filhos, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL), declarou que bastava um soldado e um cabo para fechar o STF. Era a resposta a uma pergunta sobre uma possível ação do Exército caso seu pai fosse impedido de assumir a Presidência por alguma decisão do Supremo.
Começava assim, antes mesmo da posse, uma relação conflituosa de Bolsonaro com o STF, que duraria todo o mandato. Por quatro anos, ele ofendeu ministros da Corte, inclusive em eventos públicos, ameaçou não cumprir decisões judiciais e sugeriu que poderia convocar as Forças Armadas para intervir na cena política contra decisões que considerasse abusivas do Poder Judiciário.
O presidente confrontou a Justiça ao atacar as urnas eletrônicas, levando o Supremo a determinar a presença de membros das Forças Armadas no grupo do TSE de fiscalização das eleições. Para analistas, a intenção de Bolsonaro com o comportamento de confrontar o Judiciário seria enfraquecê-lo como parte de um processo para buscar as condições para um golpe de Estado.
Ascensão e queda da Lava Jato
No mesmo período, a Justiça viveu um episódio que atingiu suas estruturas e dividiu a opinião pública sobre a atuação do Judiciário, a Operação Lava Jato. Iniciada em 2014, tinha o propósito aparente de combater casos de corrupção ligados à Petrobras, e rapidamente ganhou destaque na imprensa e simpatia popular. Ao longo dos anos, a operação prendeu e condenou mais de cem pessoas, incluindo empresários e líderes políticos, dos quais o mais importante foi o então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
As duas principais faces públicas da Lava Jato, o juiz Sérgio Moro, da 13ª Vara da Justiça Federal de Curitiba, e o procurador Deltan Dallagnol, ficaram famosos no Brasil inteiro e passaram a ser tratados como heróis. Mas seus procedimentos e conclusões receberam críticas desde o início – com pouca repercussão – em razão de falta de provas, dos atropelos das garantias legais e de delações premiadas de acusados que teriam sido obtidas de forma abusiva.
As prisões de políticos e empresários, como resultado da ação do Judiciário e do Ministério Público Federal, fizeram a Lava Jato ser considerada um caso de sucesso no desmantelamento de um enorme esquema de corrupção. Em 2018, em razão de sua condenação, Lula foi impedido pelo STF de disputar a eleição presidencial, quando liderava a corrida nas pesquisas.
A imagem da Lava Jato teve um primeiro abalo após a eleição de Jair Bolsonaro, pois o juiz Sérgio Moro aceitou o convite para integrar o governo eleito, e assumir o Ministério da Justiça. Sua atitude foi apontada como antiética, já que a atuação do juiz, ao impedir a candidatura de Lula, havia sido fundamental para determinar o resultado da eleição. Ainda assim, Moro mantinha grande popularidade.
Mas em 2019 a história começou a mudar. A revelação pelo site jornalístico The Intercept Brasil de conversas entre o juiz e Dallagnol, e deste com seus colegas, revelou que Moro e o Ministério Público trabalhavam em conjunto na busca de provas e depoimentos para incriminar Lula e as pessoas que definiam como alvo, o que é totalmente ilegal. O juiz tem de ser imparcial e independente tanto dos advogados de defesa quanto dos procurados do MP, responsáveis pela acusação.
A partir de então, os indícios de parcialidade de Moro se multiplicaram e foram um dos motivos para a anulação dos julgamentos de Lula, que chegou a ficar 580 dias preso. Aos poucos, outros acusados também conseguiram anulações de seus processos e a imagem da Lava Jato se deteriorou, manchando também a Justiça como um todo.
Ministros ou celebridades?
De heróis, Moro e Dallagnol passaram a ser duramente criticados pelos próprios membros da cúpula do Judiciário, como Gilmar Mendes, ministro do Supremo, que afirmou que a Lava Jato envergonhava todo o Poder Judiciário.
Sua atitude é reveladora, porém, da mudança de comportamento público dos ministros do STF. Antes discretos, adeptos do conceito de que “o juiz só deve se manifestar nos autos do processo”, parte deles tornou-se celebridade, com aparições frequentes em eventos e programas de televisão e internet.
Essa familiaridade permitiu que a população passasse a dar sinais de intimidade com os magistrados – para bem e para o mal. O exemplo mais claro é que o ministro Alexandre de Moraes ganhou o apelido de “Xandão” por suas decisões firmes e contundentes, como no caso das mais de mil prisões dos envolvidos nos ataques às sedes dos três poderes, em Brasília, em 8 de janeiro de 2023. No caso, o apelido serve tanto para apoiadores quanto para detratores. De qualquer forma, seu rosto e seu nome “viralizaram” nas redes sociais e são hoje conhecidos por todo o Brasil.
VEJA COMO FUNCIONA O PODER JUDICIÁRIO
A função do Judiciário é aplicar a Constituição e as leis para assegurar a vigência dos direitos individuais e coletivos. Seus membros ingressam na carreira por concurso e são promovidos por critérios de antiguidade e exercício de funções. Quando chegam no topo da carreira, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) são nomeados pelo presidente da República, após aprovação do Senado, e devem ter notório saber jurídico.
Há a Justiça Federal, a Especializada e a Comum. A Justiça Federal julga ações em que o governo federal e seus órgãos e empresas forem parte interessada. A Justiça Especializada é formada pelas justiças Eleitoral, Militar e do Trabalho. A Justiça Comum, ou Estadual, é responsável pelas ações fora da competência federal. É o foro para ações de inconstitucionalidade de leis ou atos estaduais e municipais e para ações criminais, civis e comerciais. Seus tribunais dividem-se em comarcas e os recursos a suas decisões são impetrados nos Tribunais de Justiça (TJs) – órgão máximo de cada estado.
As demandas jurídicas são analisadas pela primeira instância e suas decisões podem ser apreciadas pela instância superior, que vai confirmá-las ou reformá-las. Na Justiça Federal, a segunda instância são os Tribunais Regionais Federais (TRF); na estadual, os Tribunais de Justiça; e na trabalhista, os Tribunais Regionais do Trabalho (TRT). Há ainda o Conselho Nacional de Justiça, órgão de controle e fiscalização do Judiciário.
Agentes do Poder Judiciário
Juiz É o magistrado de primeira instância. Os juízes são bacharéis em direito que entram na carreira por concurso público. Têm cargo vitalício e não podem ser destituídos por decisão administrativa. São proibidos de exercer atividades político-partidárias ou outra função, salvo o magistério. Cabe a eles interpretar e aplicar as leis e decidir qual, entre as partes envolvidas numa disputa, está com o direito.
Desembargador É o magistrado dos tribunais de segunda instância. Decide sobre os recursos apresentados contra as decisões dos juízes de primeira instância e propostas apresentadas diretamente à segunda instância. As decisões dos tribunais são proferidas de forma colegiada, por três desembargadores.
Ministro É o juiz dos tribunais superiores, como o Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal Superior do Trabalho. Eles são nomeados pelo presidente da República, e submetidos à aprovação do Senado.
Cortes
Justiça eleitoral Responsável pela organização e fiscalização das eleições. É formada pelas Juntas Eleitorais, pelos Tribunais Regionais e pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O TSE é formado por sete ministros: três nomeados pelo STF; dois indicados pelo presidente da República a partir de uma lista sêxtupla feita pelo próprio Supremo; e dois pelo STJ. O mandato dura dois anos e pode haver recondução.
Justiça Militar Julga não só militares, mas também civis que cometem crimes militares. A primeira instância são os juízes-auditores, e a segunda, o Superior Tribunal Militar (STM). A Justiça Militar Estadual julga os membros das polícias militares. Sua primeira instância são as auditorias militares, e a segunda, os Tribunais de Justiça estaduais – no caso de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e São Paulo, há Tribunais de Justiça Militares.
Justiça do Trabalho Julga questões ligadas às relações de trabalho. É formada pelas Varas do Trabalho, pelos Tribunais Regionais e pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), formado por 27 ministros com mandato vitalício nomeados pelo presidente e aprovados pelo Senado – dos quais um quinto são membros do Ministério Público do Trabalho e o restante, juízes de carreira.
Tribunal de Justiça Os TJs, como são conhecidos, são a cúpula da Justiça estadual, formada pelos juízes com mais tempo de carreira. Julga casos que passaram pelas instâncias inferiores e os que exijam foro privilegiado dentro da esfera estadual – como processos envolvendo prefeitos, deputados estaduais e o governador.
Superior Tribunal de Justiça (STJ) Analisa decisões tomadas pelos tribunais regionais federais e pelos tribunais estaduais. É formado por 33 ministros – nomeados pelo presidente da República e aprovados pelo Senado com mandato vitalício.
Supremo Tribunal Federal (STF) Órgão máximo do Poder Judiciário, guardião dos princípios da Constituição. É formado por 11 ministros nomeados pelo presidente da República aprovados pelo Senado com mandato vitalício (até 75 anos). É o único foro para julgamentos de ações diretas de inconstitucionalidade de leis e atos normativos do Executivo federal. Julga, no âmbito penal, o presidente da República, os ministros de Estado e membros do Congresso.
Funções essenciais da Justiça
Advocacia-geral da União (AGU) Representa judicialmente a União, dá assessoria e consultoria jurídica ao Poder Executivo federal e atua em questões de interesse do Estado. É chefiada pelo advogado-geral da União, de livre indicação do presidente da República.
Defensoria Pública (DP) Sua principal função é manter o princípio de igualdade dos cidadãos perante a lei ao defender e orientar pessoas sem recursos para pagar advogados. Existe a Defensoria Pública da União e a de cada estado.
Ministério Público (MP) Com a Constituição de 1988, o MP passou a ser considerado o órgão defensor dos interesses gerais da sociedade, tendo a atribuição de promover a ação penal pública, zelar pelo bom atendimento dos poderes e serviços públicos e pelo respeito aos direitos constitucionais do cidadão, fazer o controle externo da ação policial e defender a ordem jurídica e o regime democrático. O MP tem autonomia funcional e administrativa. A instituição abrange o Ministério Público da União – que reúne o Ministério Público Federal, o Ministério Público do Trabalho, o Ministério Público Militar e o Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios – e o Ministério Público dos Estados.
O Ministério Público Federal (MPF) atua na Justiça Federal, por meio dos procuradores da República. Os Ministérios Públicos Estaduais têm os promotores de Justiça, que atuam no primeiro grau, e procuradores de Justiça, no segundo grau. As promotorias e procuradorias de Justiça respondem pelas áreas de infância e juventude, criminal, patrimônio público, consumidor, meio ambiente, saúde e cidadania.
O MP é chefiado, no âmbito da União, pelo procurador-geral da República, e, nos estados, pelo procurador-geral de Justiça. O primeiro é indicado pelo presidente da República, precisa ter mais de 35 anos e a aprovação da maioria absoluta do Senado. O mandato é de dois anos, com direito a uma recondução. O segundo é indicado pelo governador, após formação de lista tríplice pelos membros da instituição. Seu mandato é de dois anos, também com direito a uma recondução. O ingresso na carreira do Ministério Público ocorre por meio de concurso público.