Água: Seca histórica castiga o Nordeste
SECA HISTÓRICA CASTIGA O NORDESTE
A maior falta de água no Nordeste dos últimos cem anos sinaliza a importância da gestão dos recursos hídricos no país e no mundo
Por Guilherme Eler
Solos rachados, perdas na agricultura, mortes de animais e, sobretudo, a falta de água para consumo humano. São situações já esperadas pelo sertanejo do Nordeste, durante os períodos mais secos do ano. Mas não durante anos seguidos. A atual estiagem já dura seis anos consecutivos e é a seca mais prolongada da história recente na região. Os reflexos já afetam não só a população rural, mas também o cotidiano dos centros urbanos.
O cenário vem se agravando. De acordo com o Monitor de Secas da Agência Nacional de Águas (ANA), mais de 65% do território nordestino se encontrava na categoria de “seca excepcional”, em dezembro de 2016.
E essa área já era 18% maior em comparação ao mesmo mês do ano anterior. Entende-se por “seca excepcional” uma estiagem muito longa e grave, na qual há a perda de plantações, hortas, criações animais e vegetações, rios secam e há escassez de água nos reservatórios, córregos e poços, criando situações de emergência generalizadas.
Abastecimento em colapso
No início de 2017, 142 dos 533 reservatórios do Nordeste estavam secos. Na Paraíba, 70 deles operavam com menos de 5% do volume total, incluindo o açude Epitácio Pessoa, que abastece Campina Grande, a segunda cidade mais populosa do estado, e outros 18 municípios. No Ceará, 137 dos 184 municípios estavam em situação de emergência nos primeiros meses do ano, incluindo a capital, Fortaleza. Na Bahia, eram 61 cidades somando mais de 950 mil pessoas, segundo a Superintendência de Proteção e Defesa Civil do estado.
Ao decretarem estado de emergência, prefeituras e governos estaduais ganham prioridade para receber linhas emergenciais de crédito para amenizar as perdas econômicas nas áreas mais atingidas pela seca. Além de tentar garantir o abastecimento da população, o governo federal concentra o auxílio à região em medidas como perfurar novos poços artesianos, ampliar o programa de distribuição de cisternas e bombas e ampliar os esforços para construir reservatórios, barragens e recuperar açudes. Estima-se que a Operação Carro-Pipa ao fim de 2016 já compreendia 848 municípios da Região Nordeste e do norte de Minas Gerais, levando água a 3,7 milhões de brasileiros. Os números são do Exército Brasileiro e do Comando Militar do Nordeste (CMNE).
Diante do atual quadro, o governo federal renegocia as dívidas dos pequenos produtores, por meio do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf ), e expande programas como o Garantia-Safra e Bolsa-Estiagem. São tentativas de manter as atividades no campo, mesmo em condições tão adversas. A região concentra mais da metade de todos os empreendimentos de agricultores familiares do país, segundo o último Censo Agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A pecuária, uma das principais atividades agrícolas nordestinas, está entre as mais afetadas. Só em Pernambuco, estima-se que as perdas no setor até 2015 tenham chegado a 1,5 bilhão de reais. Cresce, inclusive, a substituição do gado por cabras e ovelhas, mais resistentes às secas. Ao fim de 2016, o governo federal autorizou o repasse de 7 milhões de reais para compra de forragem alimentar para os animais.
Razões da seca
Para entender a atual seca no Nordeste é preciso atentar para fatores climáticos que atuam na região. O território nordestino está em zona de clima semiárido, com baixos níveis de umidade e altas temperaturas na maior parte do ano. O regime de chuvas é irregular, o que favorece a ocorrência de longos períodos de estiagem e a quase inexistência de rios permanentes. A maior parte da precipitação concentra-se em março, abril e junho, e a média para todo o ano é inferior a 800 mm (ou seja, 800 litros por metro quadrado), e em algumas áreas fica perto de 500 litros. É muito pouco. Na maior parte do país a média fica acima de mil litros, e na Região Norte varia de 1,8 mil a 3,3 mil litros, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
A variação na ocorrência das chuvas em nosso clima semiárido ocorre por alterações na temperatura dos oceanos, diretamente ligada à dinâmica das massas de ar. Na chamada Zona de Convergência Intertropical (ZCIT), localizada próximo à linha do Equador, forma-se uma massa de ar quente e úmida, que chega ao Nordeste provocando chuvas na região litorânea, de Mata Atlântica. Quando segue para o interior da região, essa massa perde força e umidade, tornando-se uma massa quente e seca que estaciona por longos períodos.
As sucessivas secas na região levaram milhões de nordestinos a deixar seus estados de origem, sobretudo nas décadas de 1940 e 1950, e formarem um fluxo migratório contínuo para as demais regiões. Nas décadas recentes, com o maior desenvolvimento econômico do Nordeste, esse fluxo havia praticamente desaparecido, mas agora a seca volta a ser um fator de pressão.
Além dos fatores geográficos, fatores políticos são apontados como entraves para o enfrentamento das secas. Historicamente, os grandes latifundiários e coronéis usaram a escassez de água como moeda de troca para apoiar os sucessivos governos locais e o federal e receber, em contrapartida, empréstimos e prioridade na construção de açudes, projetos de irrigação e outras políticas que favorecem as suas terras, o que atrasou políticas de boa gestão da água. Esse fenômeno ficou conhecido como “indústria da seca”.
A estiagem recente no Sudeste do país mostra como é importante haver boa gestão dos recursos hídricos
Transposição do Rio São Francisco
A principal obra do governo federal visando ao combate dos efeitos da seca é a transposição de águas do Rio São Francisco, o “Velho Chico”, principal rio do Nordeste. A área coberta por sua bacia hidrográfica compreende seis estados e o Distrito Federal. Iniciada em 2007, a transposição objetiva desviar de 1% a 3% da água do rio, por meio de duas extensões construídas com dutos e canais (veja mapa no alto). Estima- se que a obra beneficiará até 12 milhões de pessoas. As obras estouraram o prazo em anos, mas já estavam 95% concluídas no início de 2017, quando a água do tronco leste chegou a Pernambuco e à Paraíba.
Há quem questione se o projeto será eficaz, pois o São Francisco depende de outros 36 afluentes também afetados na estiagem, e temem pela própria preservação do rio. Além disso, há o temor dos impactos da obra sobre o meio ambiente e da expansão agrícola que promoverá.
O desafio da gestão
Mesmo possuindo cerca de 12% das reservas mundiais de água doce e grande número de rios e aquíferos, o Brasil não está imune à escassez hídrica. O problema é que a distribuição do recurso não corresponde à da população. A Região Norte contém 70% do total da água disponível, mas apenas 8% da população. Logo, 92% da população do país dependem dos 30% da água restante. Essa desigualdade mostra quanto é importante haver boa gestão dos recursos disponíveis.
A estiagem histórica atravessada pelo Sudeste a partir de 2014 é uma mostra da importância dessa gestão. A estiagem esvaziou o Sistema Canteira, o maior no abastecimento da Região Metropolitana de São Paulo, e provoca racionamento desde então. O rápido crescimento populacional da região pressiona as fontes de abastecimento, que não evoluíram na mesma proporção. Na década de 1960, quando o Cantareira foi projetado, a cidade de São Paulo contava com 4,8 milhões de habitantes, mas agora o sistema tem de abastecer mais de 20 milhões de pessoas da Grande São Paulo.
O acelerado e desordenado processo de urbanização das cidades brasileiras também agrava o acesso à água em quantidade e qualidade satisfatórias. O desmatamento e a impermeabilização do solo, provocada por calçadas e asfalto, impedem que a água penetre em lençóis freáticos, prejudicando a recarga dos aquíferos e intensificando o processo de assoreamento de rios. A ocupação irregular de regiões de mananciais e áreas de várzea também entra na conta, por destruir a mata ciliar, que mantém cursos de água, e poluí-los com esgoto e lixo doméstico. Na Grande São Paulo, por exemplo, o percentual do esgoto coletado e tratado é de apenas 68%. No Brasil, o número fica em 40,8%, segundo o Ministério do Meio Ambiente. Os dejetos prejudicam a oxigenação da água, elevando os gastos no tratamento.
Os problemas de manutenção que afetam a distribuição nos centros urbanos também resultam da falta de investimentos no setor. A verticalização das cidades com a construção de edifícios comerciais e residenciais, sobrecarrega a rede hídrica. Tubulações velhas estão mais propícias a romper. De acordo com dados estimativos do Ministério do Meio Ambiente, chegaria a 36,4% o desperdício da água tratada.
O acesso à água no mundo
O desperdício de água, representado pela má gestão, vem sendo cada vez mais combatido em nível global. O volume total da água no planeta é da ordem de 1,4 bilhão de quilômetros cúbicos, mas 97,5% estão nos oceanos e apenas os 2,5% restantes são doces. Além disso, a distribuição também é desigual globalmente.
A população mundial cresceu de 2,5 bilhões de pessoas em 1950 para os mais de 7 bilhões atuais. Isso não implica somente em mais torneiras abertas e chuveiros ligados, pois o consumo das pessoas responde por somente 11% do total mundial. A indústria e a agropecuária consomem os outros 89% da água, e aumentam sua produção para acompanhar o consumo crescente. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), hoje ao menos 1,8 bilhão de pessoas não têm acesso seguro à água em condições para consumo, e essa situação tende a se agravar nas próximas décadas.
Água
SECA NO NORDESTE Desde 2012 não chove regularmente nessa região, que vive sua maior seca dos últimos cem anos. Os reservatórios operam em níveis muito baixos e a falta d’água já prejudica o abastecimento das cidades. Muitas se encontram em estado de emergência, sendo socorridas por políticas públicas, como a construção de poços e cisternas e subsídio às atividades agropecuárias.
CAUSAS AMBIENTAIS O território nordestino apresenta clima semiárido, com baixos níveis de umidade e altas temperaturas em grande parte do ano. O regime de chuvas irregular, concentrado em apenas três meses, explica os longos períodos de estiagem na região.
GESTÃO DA ÁGUA Historicamente, os programas públicos no Nordeste tendiam a priorizar áreas Controladas por latifundiários. A esse fenômeno deu-se o nome de “indústria da seca”. Com a necessidade de melhor gestão da água, uma das medidas para democratizar o acesso a uma maior população é o projeto de Transposição do Rio São Francisco. O projeto, no entanto, é criticado por seus possíveis impactos ambientais, como eventuais prejuízos à biodiversidade e desequilíbrio de ecossistemas ligados à preservação do rio.
ÁGUA NO BRASIL Mesmo contando com 12% das reservas mundiais de água doce, o país não está imune à escassez hídrica, pois a distribuição desse manancial é desigual no território. A urbanização acelerada das cidades aumenta as demandas por água e polui os corpos hídricos, enquanto a impermeabilização do solo por asfalto e cimento prejudica a reposição natural da água em aquíferos e assoreia os rios.
PROBLEMA GLOBAL A falta de água já é enfrentada em diversas regiões do mundo. E o crescimento da população aumenta o consumo de alimentos e produtos da indústria e da agropecuária, setores que, juntos, consomem 89% da água. A Organização Mundial da Saúde estima que, até 2050, 3 bilhões de pessoas terão de conviver com a escassez hídrica nas cidades.