O texto
Libertinagem
Aliviar a alma, esta é a principal finalidade do ato de escrever. Para escrever, é necessário deixar as palavras simplesmente fluírem, deixá-las chegarem de dentro, do lugar mais profundo de nossa existência. Não se deve, em hipótese alguma, forçar a escrita, visto que ela simplesmente acontece.
Converter sentimentos e emoções em palavras é uma arte. A arte de escrever. E como toda arte, exige comprometimento, exige a espera, o tempo do desabrochar. Olhar para o papel, muitas vezes durante horas, e esperar até que as palavras certas cheguem pode não ser fácil, e muitas vezes frustrante, mas nada mais prazeroso do que a chegada das palavras, senti-las correndo nas veias e deslizando para o papel.
Escrever é o trabalho da alma, e a alma trabalha quando ela quer, quando a inspiração chega. Escrever é um trabalho cheio de minúcias, uma vírgula errada e o texto pode passar exatamente a ideia contrária. Mas escrever vai muito mais além de sinais gráficos e regras ortográficas – claro que são muito importantes e colaboram, inclusive, com a estética do que se está escrevendo, escrever é conteúdo, escrever é emocionar e se emocionar ao longo da trama. Escrever é mostrar ao mundo aquilo que acontece dentro de você, e por este motivo pode ser um processo muito lento, visto que muitas vezes o entendimento do mundo interior é um processo lento.
Para muitos, um sacrifício e para outros uma viagem grátis para o mundo interior. Sem dúvida nenhuma, escrever é o melhor jeito de conhecer-se, lenta porém profundamente. Seja por hobbie ou trabalho, desenvolver a escrita é um ato de libertação. Escrever é aprender a buscar inspiração nas coisas mais simples da vida, é olhar o mundo com outros olhos. Com os seus olhos.
– Confira a proposta de redação “o ato de escrever”
A análise
O texto “Libertinagem” está mais para poesia do que para prosa, está mais para um “tema livre” (do tipo “para você, o que é escrever?”) do que para o real e específico recorte temático da proposta redacional, que era: “Escrever: o trabalho e a inspiração”. Sendo assim, por dois motivos – inadequação ao gênero textual exigido e por não adequação ao recorte temático proposto – a produção textual merece a anulação.
O autor, provavelmente, deixou-se enganar pela aparente – repita-se – aparente liberdade temática da proposta redacional. Perguntas, comentários e afirmações presentes na proposta foram, supostamente, os responsáveis por levar o aluno ao engano de achar que se poderia, realmente, escrever o “que eu bem entendesse e o que bem quisesse” sobre o ato de escrever.
Os trechos da proposta que poderiam, equivocadamente, levar a essa interpretação são: Afinal, para que escrever? Para que fazer uma boa redação? Só para passar no vestibular? Na era da internet, para que eu tenho de aprender a redigir, se a comunicação visual funciona muito melhor? Eu não sou escritor, não preciso saber criar textos! É isso o que você pensa mesmo? Ou são apenas desabafos? Pois chegou a hora de dizer realmente o que pensa sobre o escrever. Para Clarice Lispector, escrever é maldição e salvação. Para Syd Field, é uma atividade profissional muito importante dentro da atividade geral da arte cinematográfica. E para você?
Grande deslize cometeu o aluno ao se deixar levar por essas passagens da proposta redacional. Uma leitura mais atenta faria com que o candidato percebesse que a frase temática – “Escrever: o trabalho e a inspiração” – exigia, necessariamente, que se dissertasse (repita-se: dissertasse) sobre as duas visões (uma representada pelo texto de Clarice e a outra, pelo texto de Syd Field) que se podem ter sobre o ato de escrever. De acordo com o recorte temático, a tarefa da escrita pode ser fruto de talento, de inspiração, de dom; ou seja, a escrita pode ser fruto de algo que venha natural e artisticamente ao “privilegiado” escritor (ideias presentes no texto de Clarice). Ou o ato de escrever pode ser resultado de trabalho, de um trabalho árduo, braçal, rotineiro, disciplinado, programado e suado; impressões e visões que podem ser conseguidas através do relato do roteirista cinematográfico Syd Field. Necessariamente, era sobre essa dualidade que se deveria ter dissertado.
E “Libertinagem” não é uma dissertação. Há nele frases, muitas vezes, soltas, desconexas linguisticamente entre si, não há também coesão entre os parágrafos. Não há, no texto, os elementos coesivos tipicamente dissertativos, não há argumentação; apenas impressões (Olhar para o papel, muitas vezes durante horas, e esperar até que as palavras certas cheguem pode não ser fácil) e subjetivismos (Escrever é mostrar ao mundo aquilo que acontece dentro de você, e por este motivo pode ser um processo muito lento, visto que muitas vezes o entendimento do mundo interior é um processo lento). No texto em questão, não há introdução, nem desenvolvimento, nem, muito menos, conclusão. Não é possível concluir se não houve, anteriormente, uma progressão argumentativa; na produção textual, não houve argumento. Portanto, nem tampouco houve progressão. O título “Libertinagem”, que pode ser um “simples” substantivo ou uma referência à obra literária de Manuel Bandeira, em nada contribui com o texto por não ser seguido de nenhuma explicação semântica para o mesmo ao longo da produção textual. Se em nada contribui, o título é mais um elemento que confirma e justifica a sua anulação.
*Análise da redação feita pela professora de gramática e redação Lilica Negrão, do cursinho Oficina do Estudante