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“Sou deficiente visual e amo ler”

No post desta semana, vamos compartilhar com vocês o belo relato de uma leitora chamada Tamara Padilha, que tem 18 anos e é de Braço do Norte, em Santa Catarina. Na forma de uma crônica, ela fala sobre sua experiência com os livros sendo deficiente visual e conta como descobriu o prazer da leitura e […]

Por Ana Prado
Atualizado em 24 fev 2017, 15h43 - Publicado em 7 jul 2014, 20h56

No post desta semana, vamos compartilhar com vocês o belo relato de uma leitora chamada Tamara Padilha, que tem 18 anos e é de Braço do Norte, em Santa Catarina. Na forma de uma crônica, ela fala sobre sua experiência com os livros sendo deficiente visual e conta como descobriu o prazer da leitura e da escrita, incluindo sua relação com os livros em braile e os e-books. 

“Sou deficiente visual e amo ler”

Um toque no papel

“Desde bastante nova tenho um gosto especial por leitura. Gosto este que vem cada vez mais crescendo e se desenvolvendo. Gosto este que me provoca a sempre ter um livro aberto e nunca ficar uma semana sem ler ao menos uma história, gosto este que de tanto ler me instiga uma vontade enorme de escrever.

Nesta manhã, finalizei um livro chamado “Quase memória”, do escritor brasileiro Carlos Heitor Cony, no qual o protagonista recebe um embrulho que aparentemente foi enviado pelo pai já falecido há dez anos e havia sido preparado por ele em vida para ser entregue ao filho anos depois de sua morte. Fiquei envolvida pela história desse filho que, com aquele embrulho em cima de sua mesa, recorda passagens de sua vida, de sua infância, o cheiro das mangas que comia, o cheiro das pessoas, dos lugares, as texturas das coisas, e também fui remetida a algumas memórias. Foram memórias bastante específicas.

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Incentivada pelo livro de Cony, fui à procura de outros livros brasileiros para serem inseridos na minha já abarrotada lista de leituras a serem feitas de imediato ou em um dia distante. Entre os títulos que escolhi, eu já havia conhecido vários em braile, embora nunca tenha lido muitos deles, e esses livros serviram apenas para alimentar as memórias que já chegavam sobre minha trajetória de amor com a leitura.

Lembro-me dos meus primeiros livros. Acredito que tinha cerca de quatro ou cinco anos quando ganhei uma pequena maleta contendo doze livrinhos de histórias de conto de fadas, acompanhados por dois CDs, que narravam as histórias em áudio. Essas histórias estavam dispostas em doze livros, porém eram vinte e quatro. Em cada um deles existiam duas. Ainda hoje consigo recordar da textura daquelas páginas sob meus dedos e dos títulos da maioria delas.

Os livrinhos eram em tinta, expressão utilizada para designar a escrita comum que todas as pessoas que enxergam utilizam. Para uma criança da minha idade não tinha a menor importância o fato de que eu não conseguisse ler os livros sozinha. Sempre que tinha a oportunidade, pedia a alguém que as lesse para mim, ou então ia até o aparelho de som e inseria sozinha os CDs para ouvir as vinte e quatro histórias muitas e muitas vezes.

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Alguns anos depois aprendi o braile, modo de escrita utilizado por deficientes visuais, sendo estas basicamente várias combinações de pontos em relevo ao longo de um papel que formam o alfabeto, os números, os símbolos para alguém que não possui a visão. No início do aprendizado em braile, meu acesso a uma biblioteca que proporcionasse literatura era bastante restrito. Não havia nenhuma por perto, ao menos não alguma que fosse do meu conhecimento. Recebia apenas os livros didáticos que eram utilizados por mim na escola ou alguns pequenos livros de contos de fadas.

Mesmo com poucas opções, lia sem parar. Repetia muitas e muitas vezes a leitura dos conteúdos contidos nos livros. Gramática, ciências, estudos sociais… Nada escapava de meus dedos ávidos e atentos.

Muitos foram os livros que me marcaram até hoje, mas, nessa fase de poucos livros e muito desejo de tê-los, um dos mais marcantes foi um chamado “A felicidade das borboletas”, da Patrícia Egel Secco. Era um exemplar de poucas páginas, e relatava a história de Marcela, uma menina que desejava dançar como as borboletas.

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Nessa mesma época surgiu o desejo por escrever. Em uma madrugada saiu meu primeiro poema, incentivado por um projeto escolar. Ele se chamava “Criança é para estar na escola”. Depois disso foram vários dias em cima da reglete, instrumento utilizado para a escrita do braile, escrevendo folhas e folhas de pequenas histórias infantis ou simples poemas. As pessoas que conheciam esse meu desejo de escrever sempre o incentivavam e apoiavam, e eu hoje ainda o mantenho bastante forte.

Entre a escrita e a leitura de antigos livros, fui encaminhada a uma associação de deficientes visuais. Para a minha grande felicidade lá existia uma biblioteca considerável, com volumes e volumes de livros. A maioria era de clássicos brasileiros, embora houvesse alguns internacionais também. Nessa biblioteca conheci Pedro Bandeira, Maria José Dupré, Marcos Rey, entre outros grandes livros que ainda guardo na memória. Passava dias inteiros lendo-os em braile e já não mais precisava repeti-los, pois tinha um acervo grande a meu dispor. Os livros eram grandes – o braile os faz ter um volume considerável. Um pequeno livro de cem páginas em tinta era às vezes dividido em dois ou três volumes.  Chega neste momento a meus dedos a sensação do toque naquelas capas lisas e planas, interrompidas apenas pelo título escrito em braile nas capas. O cheiro daquelas páginas, algumas já bastante antigas, cheiro do papel, do tempo, das letras. Posso ver até as cores, que eram relatadas para mim por pessoas que enxergavam e diziam-me qual a cor da capa de determinados livros. Passava muitas vezes até madrugadas lendo, com o livro embaixo das cobertas, até que a cabeça começava a doer de tanto que já havia lido naquele dia.

Depois vieram os e-books, livros aos quais era possível o acesso via computador. Descobri um mundo de livros muito maior do que a biblioteca onde eu já pensava ser um sonho haver aquele tanto de histórias. Descobri autores de que nunca havia ouvido falar. Histórias passadas na China, Estados Unidos, Inglaterra, Paris, histórias passadas no passado e no futuro, histórias passadas em uma fazenda ou em uma praia. Descobri nomes, vozes, cheiros, comidas. Descobri roupas, objetos, modos diferentes de escrever. Descobri palavras. E com todas essas descobertas consegui ler com muito mais rapidez. Ter quase todos os livros que eu desejava e ainda tenho. É fantástico esse mundo de livros pelo qual consigo me movimentar hoje. Um mundo tão cheio que me deixa em dúvida para saber qual a próxima história a ser desvendada.

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Já ouvi de pessoas que diziam que o fato de eu ler tanto me faria ficar em outro mundo, não estar na realidade. É o contrário. Eu estou totalmente no mundo real, como todos estão, e não sou a única a gostar de ler, mas o mundo dos livros é um mundo já pronto, ao qual apenas observamos, espreitamos lá para dentro, admiramos, mas não entramos lá, apenas temos essa impressão quando a história é muito intensa.

Enfim, se fosse relatar todas as histórias que já descobri, todas as minhas impressões sobre os livros, ficaria horas e horas escrevendo, porém a impressão mais forte que o livro de Carlos Heitor Cony me trouxe hoje foram as leituras em braile. Percebi que, por mais que eu leia os livros que estão digitados, inseridos na memória de um aparelho eletrônico, nada compensa a satisfação de deslizar os dedos por todas aquelas folhas recobertas por pontos em relevo. Nada supre o cheiro do papel enquanto as páginas são viradas. Então me deu um grande desejo de voltar ao passado e por alguns momentos sentir aquelas texturas novamente. De encontrar-me dentro de uma grande biblioteca física e ao longo de prateleiras dar um nostálgico toque no papel.”

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