Um artista, muitas vezes, costuma aproveitar elementos do seu dia a dia para inspirar seu trabalho e suas criações. No entanto, como nem sempre essas referências são imediatas para todos, muitas inspirações acabam passando batido para os biógrafos mais dedicados e até mesmo para a própria família do artista.
Foi esse o caso da descoberta de que um dos narradores mais famosos da literatura brasileira, Rodrigo S.M., de “A Hora da Estrela”, foi na verdade batizado a partir do nome de um amigo de Clarice Lispector.
A história veio à tona quando o próprio amigo descobriu a conexão ao ler o romance de Clarice. A escritora nunca contou pra ninguém (pelo menos é o que sabemos até agora) que as escolhas do nome e das iniciais do sobrenome de Rodrigo S.M. tinham sido feitas com base em elementos da vida de Sérgio Matta (olha o S.M. aí nas iniciais! ). O jornal Folha de S. Paulo publicou uma reportagem especial sobre o assunto, escrita pelo editor da revista literária “Quatro Cinco Um”, Paulo Werneck.
Sérgio Matta contou à reportagem como conheceu Clarice. Na década de 1970, quando Matta trabalhava como auxiliar cirúrgico na Clínica Pitanguy, no Rio de Janeiro, Clarice tinha ido ao local para realizar um procedimento chamado zetaplastia – nome dado à cirurgia que ajuda a aliviar os sintomas das sequelas causadas pelas cicatrizes de queimaduras.
Lá, o jovem médico ajudou a cuidar da recuperação da escritora. Clarice sofria com as limitações de movimentos causadas pelas queimaduras depois de ficar gravemente ferida, em 1967. Na ocasião, um incêndio, causado por um cigarro, tomou conta de sua casa. O acidente quase provocou a amputação de sua mão direita.
Durante a sua estadia na clínica, os dois estreitaram os laços de amizade. Sérgio Matta contou a ela que sua família tinha suas raízes em Ciudad Rodrigo, na Espanha (olha o Rodrigo aí!). Depois disso, ele passou a fazer parte do restrito círculo de amigos de Clarice. Com o seu talento para as artes plásticas, Matta começou a se dedicar à ilustrações e foi convidado por Clarice para ilustrar alguns de seus trabalhos, como o livro infantil “A Vida Íntima de Laura, História de uma Galinha”.
Em 1976, ele partiu para a Europa para estudar, o que fez com que os dois se distanciassem. De acordo com a reportagem da Folha, o artista ficou sabendo de Rodrigo S.M. apenas depois da morte de Clarice, quando uma amiga enviou a ele por correio um exemplar de “A Hora da Estrela” (a obra foi publicada um pouco antes do falecimento da escritora, em 1977).
Clarice não tinha o hábito de escrever histórias biográficas e as coincidências entre Rodrigo S.M. e Sérgio Matta não vão além da inspiração para o nome do personagem. Tanto o filho de Clarice, Paulo Gurgel Valente, como o seu biógrafo, Benjamin Moser, não acreditam que o médico e o narrador sejam a mesma pessoa. No entanto, admitem que a informação pode revelar um pouco do seu processo criativo – que, neste caso, utilizou observações do seu dia a dia para a construção da história.