Como funcionam as licitações públicas do governo
Normalmente, as licitações estão relacionadas a escândalos de corrupção nos noticiários - para acompanhar, você precisa entender seus aspectos essenciais
Você já deve ter ouvido falar ou lido a respeito de licitações públicas. Elas aparecem cotidianamente nos jornais. Normalmente, as licitações estão relacionadas a escândalos de corrupção nos noticiários. Manchetes como “Operação da PF combate fraudes em licitações […]”, “Documentos apontam esquema para fraudar licitações […]”, “MPF denuncia 22 por fraude em licitação […]” são quase diárias. Para acompanhar esses acontecimentos e – por que não? – participar da fiscalização da Administração Pública, você precisa entender o que é uma licitação e compreender alguns dos seus aspectos essenciais.
Apesar de as licitações serem um tema tão abordado no nosso dia a dia, as notícias, focadas no aspecto criminoso das condutas noticiadas, dão pouca ênfase ao significado da expressão. Neste texto, vamos explicar, de forma simples, o que é licitação pública e o que é importante saber para contribuir para a fiscalização deste importante aspecto da atividade do Estado.
Licitação é a forma pela qual o Estado escolhe de quem comprar
Quando você precisa de algum produto (comida, remédios, roupa etc.) ou serviço (corte de cabelo, reparo de eletrodoméstico, conserto de roupa etc.), como você escolhe onde adquiri-los? Talvez você conheça alguém que fornece ou presta o serviço à sua família por gerações, ou faça uma pesquisa de preços no bairro, ou procure o produto ou serviço com a fama de melhor qualidade. O fato é que, provavelmente, você estará guiado por algum critério, conscientemente ou não. Talvez o critério seja a comodidade, o encontro ao acaso num passeio de fim de semana.
Uma empresa privada também terá seus critérios para eleger fornecedores. Nesse caso, especialmente no caso de empresas grandes e bem estruturadas, esses critérios são bem definidos e possivelmente escritos num regulamento interno de compras.
Pois é, o mesmo acontece com o Estado, aqui entendido no sentido mais amplo do termo, englobando a Administração Pública (União, Estados e Municípios), a Justiça e o Legislativo (Congresso Nacional, Assembleias Estaduais e Câmaras Municipais). Tudo o que o Estado faz depende de algum fornecimento ou prestação de serviço: a caneta com que o juiz assina uma sentença, o giz que o professor usa em aula, o caminhão que recolhe o lixo das ruas.
O Estado, assim como você e como as empresas, tem seus próprios critérios para escolher quem contratar para lhe fornecer os bens e serviços de que precisa. Assim como nas grandes empresas, esses critérios estão formalizados, mas não apenas em regulamentos internos. Os critérios de contratação do Estado estão previstos na Constituição e nas leis.
Aqui já podemos formular uma primeira ideia do que é licitação: é a aquisição de bens e serviços pelo Estado submetida a um conjunto de critérios estabelecidos pela Constituição e pelas leis. Na Constituição, esses critérios estão principalmente no artigo 37.
Quanto às leis sobre licitação, a mais importante delas é a de n° 8.666, promulgada no ano de 1993 e apelidada de Lei geral de licitações e contratos administrativos. Do fato de que o Estado está submetido à Constituição e às leis na definição dos critérios para a escolha de seus fornecedores decorre uma primeira consequência importante. Enquanto você pode estabelecer seus critérios de compra a cada caso (privilegiando o preço na compra de caderno e a qualidade num jantar especial) e as empresas, mesmo que sujeitas a regulamentos internos, podem alterá-los (por ordem de um diretor ou estabelecer exceções caso a caso), o Estado está sujeito a um conjunto rígido de regras. Não é que a Constituição e as leis não possam ser alteradas, mas isso exige um processo longo de discussão e formação de consenso que tornam as regras de compras do Estado mais rígidas que os critérios adotados, por exemplo, por uma empresa.
E quais são os critérios que a Constituição e as leis estabelecem para que o Estado escolha seus fornecedores? Esses critérios podem ser divididos em dois grandes grupos: critérios gerais (no jargão jurídico, princípios) e específicos (o que os juristas chamariam de regras).
Vejamos os critérios gerais. A ordem em que trataremos deles não significa que um seja mais importante que os outros. O critério decisivo poderá variar caso a caso.
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Critérios gerais para o Estado definir de quem irá comprar
O Estado deve ser justo em suas escolhas. Ser fornecedor do Estado é, em certo sentido, um direito de todos e não pode existir uma distinção subjetiva entre os interessados. É o que no direito chamamos isonomia. Por exemplo, um prefeito não pode contratar a empresa de seu filho sob o argumento de que o rapaz está começando na vida de negócios e precisa de um “empurrãozinho”.
O Estado deve buscar adquirir produtos e serviços pelo menor preço possível. No Direito, isso leva o esquisito nome de vantajosidade ou economicidade. Também pode ter peso na escolha do fornecedor a promoção do desenvolvimento sustentável. Também podem existir determinados critérios que indiquem vantagens para fornecedores nacionais, benefícios para micro e pequenas empresas e para fornecedores cuja produção tem menor impacto ao meio ambiente.
Salvo raras exceções (como no caso de contratações que coloquem em jogo a segurança nacional, por exemplo, para a construção de uma base militar secreta), as compras do Estado devem ser públicas, isto é, previamente divulgadas, para que todos os interessados possam concorrer para serem contratados (e possam fiscalizar para ter certeza de que a licitação foi realizada exatamente como deveria).
Algumas regras das licitações públicas
Esses critérios gerais (ou princípios) são concretizados através dos critérios específicos (as regras das licitações). Existe uma infinidade de regras que regem as licitações públicas. Vamos abordar os aspectos mais importantes delas para que você tenha um “norte” para futuros aprofundamentos.
Em primeiro lugar, é importante saber que, ao menos em teoria, cada um dos entes da Federação (União, Estados e os mais de 5 mil municípios brasileiros) podem criar suas próprias regras de licitação. Na prática, porém, estados e municípios seguem as regras da União, que estão estabelecidas na Lei n° 8.666/93. Existem, ainda, regras especiais de licitação que facilitam determinados tipos de compra, como no caso de bens e serviços comuns (aqueles do dia a dia), que podem ser adquiridos via pregão (um tipo de licitação simplificada, regulada pela Lei Federal n° 10.520/2002).
As regras estabelecidas para as aquisições do Estado variam conforme as características dos bens e serviços a serem contratados. O que definirá esses critérios é o documento através do qual o Estado divulga seu interesse em contratar, chamado edital (muitas vezes referida como certame ou certame licitatório). Esse documento é tão importante que se costuma dizer que o edital é a “lei” de cada licitação.
O edital sempre descreverá o que o Estado pretende adquirir. Esse é o primeiro filtro: só participam da licitação aqueles que têm condições de fornecer o que o Estado precisa num determinado momento. Mas, como estávamos dizendo, as regras da licitação mudam conforme o que se pretende adquirir. Se a necessidade é por um bem ou serviço complexo, o Estado poderá exigir que os candidatos demonstrem que têm capacidade de fornecer esse determinado bem ou prestar esse serviço (por exemplo, construir uma hidroelétrica). Nesse caso, os candidatos passarão por um segundo filtro, chamado habilitação técnica, em que irão apresentar documentos que comprovam sua experiência anterior no fornecimento de bens ou prestação de serviços semelhantes. Simplificando: o interessado apresenta seu “currículo” e mostra que dá conta do recado. Se o aspecto técnico é realmente muito importante, essa experiência anterior pode ser decisiva na escolha final.
Se o bem a ser fornecido ou o serviço a ser prestado implicam um investimento muito grande, surge mais um filtro na licitação, chamado habilitação econômico-financeira. Pela apresentação de determinados documentos contábeis, os interessados demonstram que conseguem assumir o investimento necessário para atender à necessidade do Estado.
Ainda, os interessados precisam demonstrar que contam com todos os documentos legalmente exigidos para realizar o fornecimento ou prestação demandados pelo Estado, o que chamamos habilitação jurídica. Esses filtros todos são necessários para que o Estado corra menos risco de não receber o que contratou ou de receber algo que não seja exatamente aquilo de que precisa. Mas, atenção: esses filtros devem ser exigentes na medida certa. Se forem exigentes demais, eles tendem a criar privilégios indevidos, direcionamentos para que, disfarçadamente, o gestor público contrate seus “amigos”.
As regras variam, também, em função do valor da contratação. Em geral, quanto mais caro o bem ou serviço a ser contratado, mais rigoroso será o procedimento para a escolha do contratado. Cada tipo de procedimento, por faixa de preço, ganha um nome específico: convite, tomada de preço e concorrência (chamadas modalidades de licitação). Por exemplo, se a contratação é de uma obra em valor superior a R$ 1,5 milhão, a modalidade a ser adotada é a concorrência, com critérios mais exigentes.
E se o Estado precisar fazer uma compra urgente?
Agora, e se o Estado precisa urgentemente de um determinado bem ou serviço? Digamos, e se acontece uma catástrofe, chuvas com deslizamento, deixando desabrigados que precisam de mantimentos?
A lei geral de licitações já previu como o poder público deve agir nesse tipo de situação. São os casos chamados de dispensa de licitação. Existem várias hipóteses de dispensa, que incluem, entre outras coisas, os casos em que a contratação tem um valor tão baixo que não faria sentido arcar com os custos de um procedimento licitatório para escolher um dos interessados em contratar.
Existem, ainda, os casos em que apenas uma pessoa (ou empresa) possui o bem ou serviço de interesse do Estado. Nessas hipóteses, o Estado também deixa de realizar a licitação, mas deve seguir um procedimento de registro da contratação, para que as pessoas possam averiguar sua regularidade posteriormente.
Um ponto importante. Os critérios usados pelo Estado para a aquisição de bens e serviços também valem, em linhas gerais, para a venda de bens (como um edifício público). Nesse caso, entretanto, existem outras peculiaridades que deixamos para tratar numa próxima oportunidade.
Bom, com esses breves esclarecimentos, você poderá entender melhor os eventos do mundo político e jurídico relacionados às licitações, como grandes aquisições (de caças pela força aérea), concessões de serviços públicos (como de rodovias e aeroportos) e casos de corrupção de grande repercussão, como a Operação Lava Jato.