Pandemia: como a geopolítica influencia na distribuição da vacina
Interesses comerciais, disputas histórias e quebra de patente afetam distribuição de imunizantes contra o coronavírus
Foi-se o tempo em que as políticas econômicas e as guerras dominavam as disputas internacionais. Desde que a pandemia do novo coronavírus se alastrou pelo mundo, há pouco mais de um ano, os esforços para combater o vírus tomaram a cena internacional. Nesse contexto, os esforços de diferentes governos para financiar e adquirir vacinas contra a Covid-19 ganharam protagonismo e se tornam a principal questão na relação entre os países.
Para entender melhor esse assunto, nós do GUIA sugerimos que você acesse nosso especial sobre vacinas e tenha uma coisa em mente: produzir vacinas é caro e arriscado. Isso porque a comprovação da segurança e eficácia de uma vacina é um processo em várias etapas e muitas substâncias podem ficar pelo caminho, o que significa um grande prejuízo para os laboratórios que as desenvolvem.
Também é preciso ter em mente que testes de vacinas e mesmo de outros medicamentos e tratamentos para pandemias raramente são realizados em apenas um país. Por isso, dizer que determinada vacina é da China e outra do Reino Unido, por exemplo, na maior parte das vezes é um erro.
Há uma disputa por vacinas no mundo?
Sim. Os países mais ricos e com maior acesso à tecnologia garantiram, antes, suas doses. Em alguns casos, como o Canadá, há, pelo menos, cinco vezes a quantidade de doses de vacinas em relação ao número de habitantes. Os Estados Unidos – que têm suas próprias vacinas –, por sua vez, têm sido acusados de reter doses. Há também trocas de acusações de restrições de insumos, o que inviabiliza a produção de vacinas, entre a Austrália e parte da Europa e entre o Reino Unido e a União Europeia. Pressões comerciais também foram apontadas como fator para contestações à vacina da Oxford/AztraZeneca – produzida no Brasil pela Fiocruz – e para o pedido do governo americano para que o Brasil não adquirisse doses da Sputinik V, a vacina da Rússia, rival histórico dos Estados Unidos. Ou seja, além da corrida científica e de uma disputa por insumos, há questões geopolíticas que influenciam na distribuição dos imunizantes entre os países.
É preciso mesmo que a maior parte da população do mundo se vacine?
Sim. O novo coronavírus já se mostrou resistente e a vacinação em massa é a única forma de diminuir a sua circulação, baixando os índices de infecção, e impedindo o surgimento de variantes de preocupação (variants of concern, em inglês), que podem levar a novas pandemias como a que eclodiu em 2020.
Qual seria a saída para que as vacinas não fiquem sujeitas a pressões econômicas?
A saída seria, conforme proposto pela Índia e a África do Sul, a quebra de patentes, o que permitiria a produção em larga escala, por diferentes laboratórios, em diversos países a custo mais baixo. Os países ricos, envolvidos no desenvolvimento das vacinas, se opuseram à ideia. O Brasil, que tem uma tradição favorável à quebra de patentes, defendeu o respeito à propriedade intelectual em meio à pandemia.
A quebra de patentes e a gratuidade universal do tratamento, assim como dos medicamentos preventivos, é a grande chave do sucesso brasileiro no combate ao HIV/Aids. Países que permitem acesso universal a tratamentos e medicamentos preventivos tanto no caso de epidemias e pandemias agudas quanto crônicas têm, invariavelmente, mais sucesso do que aqueles que restringem o acesso a tratamentos e formas de prevenção.
Que implicações a desproporção de populações vacinadas pode causar?
Várias. A principal delas, como dissemos, é o surgimento e a proliferação das variantes de preocupação. Há também fatores econômicos, uma vez que o controle da pandemia é fundamental para a recuperação econômica global e a retomada da circulação de pessoas pelo mundo. Populações de países com baixo percentual de vacinação, como o Brasil, tendem a ser prejudicadas tanto em termos econômicos quanto no seu direito à livre circulação.
Os mais ricos não deveriam doar vacinas para os mais pobres?
As vacinas têm sido usadas para ampliação da influência geopolítica de um país sobre outros. É o caso da China, segunda economia e um dos maiores polos farmacêuticos do mundo, que tem doado vacinas a países com os quais busca ter boas relações, visando a investimentos futuros. Entre esses países estão Egito,Zimbábue e Guiné Equatorial.
O governo Joe Biden acenou também com a possibilidade de doar vacinas para outros países, incluindo o Brasil, depois da imunização coletiva dos Estados Unidos. A Índia, um dos primeiros produtores mundiais de vacina e adversário da China no continente asiático, também tem doado doses a países vizinhos, como o Butão. A Rússia, por sua vez, negociou a Sputnik V com países de renda média, como a Argentina e o Egito e, recentemente, entrou no mercado brasileiro.
Como o Brasil entra nesse contexto?
O Brasil – pelo tamanho de sua população, suas condições econômicas e sua tradição em campanhas de imunização coletiva – é um país de vital interesse para os laboratórios produtores de vacinas. No entanto, o governo federal impôs severas restrições e optou por não adquirir em 2020 70 milhões de doses de vacinas como a da Pfizer, dos Estados Unidos, e tentou boicotar a adesão à CoronaVac, apelidando-a de “vacina chinesa” – o que não é verdade, mas, mesmo se fosse, não seria problema, uma vez que a China, hoje, é a principal fronteira tecnológica e industrial do mundo. Com a alta procura mundial por imunizantes, a situação é crítica e, mesmo com a aquisição nesta sexta-feira de imunizantes da Pfizer e da Jansen, nossa campanha será, invariavelmente, mais crítica que de outros países.