O que é preciso entender sobre os protestos em Cuba
Manifestações sintetizam impasses políticos e econômicos que vive a Ilha
Na última semana, Cuba começou a viver uma onda de protestos em decorrência da escassez de alimentos, medicamentos e do agravamento da pandemia de Covid-19. Segundo a Universidade Johns Hopkins, em Cuba há mais de 244 mil casos e 1579 mortes, num país com 11, 3 milhões de habitantes.
Poucos assuntos dividem mais as pessoas do que os rumos da pequena ilha no Caribe, que já foi objeto de disputa entre a Espanha e os Estados Unidos e que vive desde 1959 sob regime comunista – um dos últimos países do mundo a ainda adotar esse sistema.
Os críticos do regime cubano atribuem as manifestações ao cenário de escassez e ao desejo de liberdade. Já os defensores do Partido Comunista Cubano e da Revolução de 1959 acreditam tratar-se de uma onda de desestabilização com influência americana. Não se espante, mas… nenhum dos dois lados está errado.
Vamos entender.
Efeito internet
A chegada da internet à Ilha, a partir de 2015, e da internet móvel, em 2018, ajudou a mudar as manifestações anti-regime, segundo o antropólogo David Nemer, da Universidade da Virgínia. Hoje, 60% dos cubanos têm acesso à rede móvel. Para realizar os protestos de rua, opositores começaram a se organizar pelas redes sociais e pelo WhatsApp.
Nova Constituição
Em 2019, Cuba outorgou uma nova Constituição, que reconhece a propriedade privada de imóveis e determinados estabelecimentos – na esteira do que já vinha sendo implementado. Além disso, a nova Constituição excluiu a palavra comunismo do texto e permitiu manifestações de opositores. No entanto, o Partido Comunista Cubano continua sendo o mandante do governo e o presidente segue sendo eleito pelo parlamento.
Para o antropólogo, as ações organizadas na internet e as nova s liberdades garantidas pela nova Constituição são principais fatores que levaram aos protestos atuais, os maiores desde 1994.
Breve histórico antes dos atuais protestos
Cuba pós revolução
A Revolução de 1959, que depôs o ditador Fulgêncio Batista, aliado dos Estados Unidos, promoveu, de fato, uma profunda transformação na ilha, com a socialização de direitos básicos e de bens privados. Nenhum cubano poderia, por exemplo, ter mais de um imóvel. Aqueles que tinham, foram indenizados, enquanto o aluguel pago mensalmente por seus locatários fora convertido em prestações de hipotecas. Frente às pressões econômicas dos Estados Unidos, o país então comandado por Fidel Castro promoveu uma intensa estatização e socialização das empresas do país. Deve-se destacar a estatização do setor açucareiro, principal fonte de divisas externas da ilha. A história do país você ouve no podcast “Pulso Latino”.
Influência soviética
Até o início dos anos 1990, o regime contou com o apoio da antiga URSS, que lhe deu não apenas apoio econômico, mas ajudou a organizar burocraticamente o regime – o que é visto, mesmo entre alguns setores da esquerda, como um problema, dado o autoritarismo e o dogmatismo do regime soviético.
Relação com os Estados Unidos
Desde o início, o país sofre com pressões dos Estados Unidos. A CIA tentou matar Fidel Castro 638 vezes. O objetivo estadunidense era sufocar a experiência socialista da ilha, da mesma forma que sufocou a experiência boliviana de 1952 e o governo Allende (Chile) – ainda que este governasse dentro da institucionalidade, era um autodeclarado marxista.
Vulnerabilidade
Com o fim da URSS, Cuba entra em uma profunda crise, sobre a qual já falamos aqui. Mas há outra questão: ao contrário da URSS, da China e mesmo da Coreia do Norte, Cuba não logrou um processo de industrialização de sua economia, mantendo-se dependente de commodities, do turismo e do setor de saúde, o mais avançado em termos internacionais. Assim, sua economia acabou se tornando muito vulnerável. Isso, somado ao embargo dos Estados Unidos, gera o cenário de escassez.
Economia
Atualmente, a Ilha vive um momento delicado. Neste ano, fora revertida a política de duas moedas: o peso cubano valendo 0,04 dólar, e o peso conversível (CUC), em paridade com o dólar (1 CUC = 1 dólar). Agora, há apenas o peso cubano, valendo 24 dólares. O risco com a unificação monetária – que vem acompanhada de outras medidas – é o de inflação, dada a escassez de produtos e o mercado paralelo de compras, onde os preços obedecem à velha lei da oferta e da procura.
Covid-19
Além disso, Cuba sentiu como poucos países o impacto econômico da pandemia de Covid-19, em razão das restrições ao turismo, fundamental para sua economia. O PIB do país caiu 11% em 2020, quase três vezes a queda verificada no Brasil.
Política
Do ponto de vista político e geopolítico, Cuba enfrenta uma série de problemas. A reaproximação com o governo dos Estados Unidos, verificada no segundo governo Obama, converteu-se em sanções mais duras com a ascensão de Trump. O atual presidente, Joe Biden, prometeu rever algumas dessas sanções – mas disse que isto não é prioridade de sua gestão.
Embora haja mudanças nas políticas do país desde a década de 1990 e, com maior intensidade, desde 2008, com a ascensão de Raúl Castro, irmão de Fidel, há pouca liberdade política em Cuba. Os sindicatos são atrelados ao governo e têm pouca margem de ação independente. O Partido Comunista Cubano é ainda muito fechado para a diversidade e às demandas do povo cubano hoje – embora assuntos da ordem do dia, como o casamento igualitário, estejam em discussão em Cuba. Há, ainda, perseguições e prisões de artistas e dissidentes, além de violência policial e de infiltrados do governo nos protestos. Embora nomes de prestígio da cultura cubana, como o escritor Leonardo Padura, optem por viver na ilha.
Censura
Para conter as manifestações, o governo de Míguel Díaz Cañel, o primeiro líder político não pertencente à família Castro a residir o Partido Comunista da Ilha, cortou o acesso à internet. A interrupção do serviço de internet, todavia, não foi capaz de arrefecê-los. Ao criticar os embargos americanos, o presidente obteve apoio de outros governantes da América Latina, como o presidente Alberto Fernandéz, da Argentina. O México deve levar ajuda humanitária ao país.
Fato é que, pelos motivos elencados, Cuba vive um momento singular de sua história, para o qual não há soluções e respostas simples. Mesmo com todas as contradições da Revolução de 1959 e do regime, é preciso também compreender que em Cuba – a última colônia da Espanha e país de forte interesse geopolítico dos Estados Unidos – a questão da soberania é um valor da sociedade – tanto é que o país foi fundamental, por exemplo, na libertação de Angola.
Escute um podcast sobre o tema.