Diante do apartheid de imunizantes pelo mundo e de novas – e fortes – ondas fortes da pandemia de covid-19, como no Brasil e na Índia, a ideia da quebra temporária de patentes dos imunizantes voltou a ganhar força e tem sido discutida até pelos Estados Unidos. Nesta quarta-feira (5), o governo americano declarou-se a favor de suspender as patentes, justificando a medida com as circunstâncias atuais: “esses tempos e circunstâncias extraordinários exigem medidas extraordinárias”.
“Os EUA apoiam a suspensão de proteções de propriedade intelectual para as vacinas contra a Covid-19 para ajudar a acabar com a pandemia, e vamos participar ativamente em negociações da Organização Mundial do Comércio para que isso aconteça”, afirmou a embaixadora americana para a OMC, Katherine Tai.
Foi uma mudança do governo dos EUA em relação a 2020 quando, junto de outros 100, incluindo o Brasil, votou contra o pedido feito por África do Sul e a Índia na Organização Mundial do Comércio (OMC) pela quebra das patentes. Com isso, está se tornando uma possibilidade real a quebra, no mínimo temporária, dos direitos intelectuais sobre as vacinas contra o novo coronavírus.
Críticos alegam que isso poderia levar a uma queda na qualidade dos imunizantes, uma vez que a produção seria liberada e descentralizada. Há, ainda, interesses comerciais em jogo. Vacinas são um produto especialmente arriscado (e caro) para a indústria farmacêutica: requerem longa pesquisa, tecnologia e, muitas vezes, podem simplesmente dar em nada – ou serem atropeladas por alguma concorrente.
No caso da covid-19, no entanto, o cenário é distinto ao de outras pandemias recentes. Primeiro porque a demanda por vacinas é muito maior do que a oferta disponível hoje, razão pela qual, desde 2020, especialistas defendem que governos adquiram vacinas de diferentes laboratórios, de modo a criar um portfólio que permita acelerar a imunização.
Em segundo lugar porque o desenvolvimento dos imunizantes recebeu largos investimentos dos setores públicos e sem fins lucrativos. Ou seja, os gastos para a criação das vacinas não foram majoritariamente das indústrias farmacêuticas, que agora lucram com sua venda.
Outro ponto importante é que é consenso entre especialistas que a imunização coletiva da Covid-19 diz respeito não somente aos habitantes do próprio país, mas do mundo. E, no início do ano, 75% das vacinas estavam com os países ricos, segundo a ONU. Dadas as características do Sars-CoV-2, que tem se mostrado resiliente e gerador de variantes mais agressivas, como a P1, que se viu no Brasil, e a variante indiana, e ao fluxo de pessoas entre países, vacinar a população de um lugar mas não a de outro ainda deixará um risco latente de novas ondas. E a ameaça do surgimento de variantes que escapem à proteção das vacinas ora disponíveis.
Por que, então, as patentes ainda não foram quebradas? Entenda com o GUIA o que está em jogo nessa discussão.
O que são as patentes
As patentes são reguladas pelo direito internacional. Patentear uma invenção exige a comprovação de critérios específicos e dá direito ao monopólio da produção de determinado produto industrial. É o que permite que aquele produto seja monetizado, gerando retorno financeiro à empresa que o desenvolveu. É parte fundamental para o setor farmacêutico, que requer altos investimentos em pesquisa e tecnologia para a criação de novos imunizantes e medicamentos.
Como funciona a quebra de patentes
Apesar de haver regulação no direito internacional, a quebra de patentes – também chamada de licença compulsória – varia de acordo com a legislação específica de cada país. No Brasil, por exemplo, ela é autorizada nos casos de abuso de poder econômico (preços altos) e de emergência nacional e de interesse público, por exemplo. No final de abril, o Senado Federal aprovou a possibilidade da quebra de patentes de medicamentos e vacinas da Covid-19 que não estejam disponíveis em território nacional. A medida precisa ser votada pela Câmara dos Deputados.
A quebra de patentes resolveria o problema de escassez de imunizantes?
Em âmbito global, não. Isso porque a produção de cada vacina requer uma tecnologia específica, que pode ou não estar disponível em determinado país, além de recursos. A pressão, no entanto, facilita na negociação de acordos com as produtoras dos imunizantes sobre o valor pago por dose e até mesmo a transferência de tecnologia. O Brasil, que se opôs à quebra de patentes, mudando sua posição tradicional nos organismos insterancionais, defende esta última medida.
Já houve pressão por quebra de patentes antes no mundo?
Sim. O caso recente que melhor ilustra a questão é a quebra de patentes de antirretrovirais para o combate do HIV/Aids em 1998. Naquela época, enquanto países ricos e mesmo emergentes, como o Brasil, já tinham os medicamentos disponíveis, a África vivia uma epidemia de casos de HIV/Aids que levou a pressões nesse sentido. O protecionismo dos mais ricos impediu que houvesse a quebra de patente, com um alto custo sanitário e em vidas para o continente africano.
Em 2007, o governo brasileiro quebrou a patente do Efavirenz, em razão dos altos preços cobrados pelo laboratório americano Merck Sharp & Dohme. O medicamento passou a ser produzido pela Fiocruz. Hoje elogiada por garantir tratamento gratuito e eficaz contra o HIV, a medida foi alvo de críticas à época.
O Brasil criou também, em 1999, a Lei dos Genéricos, que permitia a produção e comercialização de medicamentos cujas patentes já estivessem expiradas, possibilitando, assim, acesso mais barato a esses remédios. A medida teve grande popularidade à época e permanece até hoje.
Que iniciativas existem para ampliar o acesso às vacinas?
Além dos acordos realizados individualmente pelos países para a aquisição e/ou desenvolvimento de imunizantes, a Organização Mundial de Saúde (OMS), em parceria com a Aliança de Vacinas Gavi (Gavi, the Vaccine Alliance) e a CEPI (Coalition for Epidemic Preparedness Innovations), criou o Covax Facility. O consórcio atua na produção e distribuição de vacinas, na negociação junto a laboratórios e na disponibilização de testagens.
O objetivo da frente é distribuir vacinas para, no mínimo, 20% da população de cada país participante – de um total de cerca de 150 – tão logo haja vacina disponível. A iniciativa, criada em 2020, tem por objetivo uma distribuição equitativa das vacinas que fazem parte de seu portfólio. Países com condições de autofinanciamento podem pleitear um percentual do total de imunizantes, mas, até que haja maior acesso às vacinas, nenhum deles receberá mais que o equivalente para imunização de 20% da população. O Brasil é um dos países-membro do grupo.
O intento, no entanto, não tem sido cumprido conforme o prometido. Por duas razões principais: a alta demanda global, desproporcional à capacidade de produção dos imunizantes, e a aquisição de vacinas em larga escala por países como os Estados Unidos, que está pensando, inclusive, em como dividir o excedente de doses após a imunização de grande maioria de sua população adulta.