O Brasil é o país que mais lincha no mundo. Mais de um milhão de brasileiros já participaram de linchamentos – ou de “ações de justiçamento” – nos últimos 60 anos. É isso que aponta a pesquisa do sociólogo José de Souza Martins, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP e autor do livro Linchamentos: A Justiça Popular no Brasil. Em resumo, essa é uma forma de punição coletiva contra alguém suspeito de praticar um comportamento considerado antissocial. Um dos problemas é que essa concepção do que é o antissocial pode variar enormemente.
É bastante comum, por exemplo, que ocorram linchamentos em casos de roubos, homicídios, crimes de violência sexual, acidentes de trânsito e até mesmo violação de valores e costumes tradicionais, morais ou religiosos. Mas há também casos motivados por desentendimentos, como uma mulher que decide reclamar do barulho do vizinho ou um trabalhador precarizado que cobra seu salário atrasado. Foi isso que aconteceu com o congolês Moïse Kabagambe, jovem de 24 anos morto no Rio de Janeiro no início de 2022.
Moïse trabalhava por diárias em um quiosque na Barra da Tijuca, Zona Oeste da cidade, e veio para o Brasil como refugiado político em 2014 com a mãe e os irmãos. Ele foi espancado até a morte por ter ido até o quiosque cobrar dois dias de pagamento atrasado. Imagens de câmeras de segurança do local mostram o momento em que o congolês é derrubado e imobilizado. Ele leva, ao todo, 40 pauladas de homens que compartilham um bastão de madeira.
“É um caso diferente da imensa coleção de casos que eu reuni, os linchamentos não seguem o mesmo modelo. O que aconteceu com o Moïse é uma novidade num certo sentido, porque decorreu de uma reivindicação do pagamento de um trabalho realizado. É claro que houve toda uma circunstância de tensão que costuma cercar esse tipo de situação, mas não descaracteriza como linchamento porque é um grupo que resolve agredir o sujeito à noite. É o que eu defino como linchamento covarde”, afirma José de Souza Martins em entrevista para o podcast O Assunto.
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A essência do linchamento
“Eles são fruto de um julgamento súbito, sumário, em que a vítima não tem tempo ou oportunidade de provar a sua inocência.” É assim que a professora de sociologia Sarah Franciscangelis, do Colégio Oficina do Estudante, em Campinas (SP), introduz o modus operandi dos linchamentos. Mas não é exatamente deste ponto que a história começa.
Em um país como o Brasil, onde ocorre ao menos um linchamento por dia, a prática ganha contornos ainda mais profundos. “É um forte indicador de que vivemos em uma cultura da violência e da desumanização do outro, do descaso com a vida humana, que parece ser descartável. Também é importante lembrar que certos grupos sociais – como negros, imigrantes e travestis – sofrem especialmente com este processo de desumanização”, diz a professora.
Ou seja, o linchamento não deixa de ter, como pano de fundo, uma violência arraigada, que se entrelaça a preconceitos como o racismo, a xenofobia e a homofobia. “Os massacres de homossexuais sempre falam da homossexualidade reprimida de quem mata. Sem exceção, os assassinos tentam abolir uma fantasia que é deles. Batendo no “veado” na rua, querem acabar com o “veado” que não os deixa dormir, o “veado” que está dentro deles. É o mesmo ódio que anima os idiotas que passam de carro ao lado do Jockey Clube em São Paulo à noite para zombar dos travestis. Gritam injúrias para silenciar sua própria incerteza de gênero e sexo”, escreveu o psicanalista Contardo Calligaris em um artigo na Folha de S.Paulo, em 2004.
Há também a tentativa de fazer justiça com as próprias mãos, por fora da legalidade e dos procedimentos institucionais da aplicação da Lei – já que essa via é percebida como ineficaz ou insuficiente. Renê Araújo, professor de Sociologia do Curso Anglo, resume: a impressão dos linchadores é que estão criando uma ordem frente a morosidade dos meios legais. Trata-se, porém, de uma concepção de ordem arcaica e patológica.
Arcaica porque remonta a um padrão de sociedade que vigorava há pelo menos 3700 anos. Foi nessa época, em meados do século XVIII a.C., que o rei da Mesopotâmia criou um código penal que levava seu nome, o Código de Hamurabi. Esse código baseava-se na Lei do Talião, conhecida pela máxima “olho por olho, dente por dente”. Ou seja, a ideia de justiça com as próprias mãos ou de pagar por uma ação com a mesma moeda não é nada recente. O problema, no entanto, torna-se ainda maior quando perpetua-se em uma era marcada pelas redes sociais, pela disseminação de notícias falsas e pelo tempo da internet que, definitivamente, não abre espaço para réplicas.
Os boatos espalham-se provocando medo e comoção em comunidades, que acabam externalizando esses sentimentos por meio de atos violentos realizados coletivamente. Provavelmente você já viu essa história repetir-se nos noticiários: uma fake news envolvendo abuso se espalha nas redes, e o suposto culpado pela ação acaba encurralado e linchado por uma multidão furiosa.
“Assim, os linchamentos são uma forma de violência auto defensiva, pautada em uma ideia de proteção preventiva que visa acabar com a causa do medo – no caso, aquele que é linchado e o que ele representa. Logo, em uma sociedade cuja sociabilidade é historicamente violenta e o sistema jurídico pouco eficiente e confiável para a maioria das pessoas, linchamentos continuam sendo praticados”, explica o professor.
Sociedade do medo
A disseminação de uma atmosfera de medo costuma gerar duas reações. As pessoas se isolam ou reagem diante daqueles que representam uma ameaça, ainda que ela não seja concreta. Segundo Renê, do Anglo, essa cultura do medo pode provocar uma espécie de esfacelamento de valores e regras sociais. Por fim, a ausência de laços comunitários acaba motivando linchamentos, em um cenário de medo e insegurança intensificados. Nas palavras do professor, “o medo é um elemento constantemente presente nessa ação bárbara”.
Sarah, da Oficina do Estudante, analisa que essa cultura do medo incentiva proposições para o enfrentamento da violência que passam, por exemplo, pela desregulamentação do porte de armas – como se as questões que envolvem a segurança pública pudessem ser resolvidas a partir da ótica do indivíduo, e não do Estado. Nesse cenário, o indivíduo se sente no direito de fazer justiça segundo seu próprio arbítrio, e as práticas de justiçamento, como são os linchamentos, se tornam mais frequentes.
Comportamento de grupo
Em “Psicologia das Multidões”, o psicólogo francês Gustave Le Bon sugere que o comportamento do indivíduo pode sofrer importantes transformações quando este se encontra no interior de uma multidão. A sensação de anonimato e de pertencimento a um coletivo organizado favorece que os indivíduos ajam de maneira violenta e primitiva, contagiados pelo grupo. “Esse tipo de comportamento parece estar presente nos casos de linchamentos. Os relatos desses fenômenos indicam práticas rituais de crueldade, vítimas que são torturadas, apedrejadas, mutiladas por pessoas comuns, que possivelmente não teriam o mesmo comportamento se estivessem envolvidas individualmente num conflito”, diz Sarah, professora do Oficina.
Apesar de agirem de forma impulsiva e agressiva, os indivíduos que lincham são blindados pela isenção de culpa, já que, em tese, agiram para extirpar algo que é visto como ruim para a sociedade. O comportamento parece ter aprovação tanto dos que participam diretamente quanto daqueles que testemunham, acompanham e se omitem.
“A multidão se caracteriza, em primeiro lugar, pelo anonimato dos participantes dela. No caso brasileiro, se o linchamento ocorre à noite, o número de participantes é muito maior do que os linchamentos que ocorrem durante o dia. Isso é indicativo da importância que o anonimato tem para uma prática que é de covardia, ou seja, fazer justiça com as próprias mãos, não recorrer a justiça se for o caso ou simplesmente cometer o crime. Além disso, na multidão, o linchador é sempre o outro”, afirma José de Souza Martins, da USP, em entrevista ao podcast.
Segundo o especialista, frequentemente, as pessoas que participam de linchamentos até esquecem dos detalhes do que fizeram. O lugar do registro e da memória dessa violência de multidão está aquém daquilo que é imediatamente consciente.
“O linchamento não é resultado de uma ação de multidão numérica, mas multidão como forma de comportamento, porque se assegura um certo anonimato. Há uma certa covardia e uma intensa violência”, conclui o sociólogo.
Efeito testemunha
Como o linchamento é um crime coletivo, operado por um grupo ou uma multidão, é comum a presença de outros indivíduos que não participam das agressões, mas que também não intervêm para que as mesmas não ocorram ou cessem o mais rápido possível.
A omissão daqueles que presenciam pode ser compreendida como “efeito testemunha” ou “efeito espectador”. As testemunhas buscam não se envolver, pois acreditam que outro espectador agirá em seu lugar, mas essa “terceirização” da responsabilidade acaba fazendo com que ninguém tome providências.
“Em muitos casos de linchamento, como o do ambulante Luiz Carlos Ruas, no metrô de São Paulo, em 2016, inúmeras pessoas presenciaram aquele senhor sendo espancado até a morte e não fizeram nada. Porém, os estudos do sociólogo José de Souza Martins apontam que inúmeros linchamentos são interrompidos pela Polícia Militar, ao ser acionada por pessoas que recorrem às instituições legais para que elas intervenham nesses casos”, afirma Renê, do Curso Anglo.
O termo “efeito testemunha” foi cunhado na década de 1960, em alusão ao caso de uma jovem, Catherine Susan Genovese, que foi estuprada e esfaqueada no Queens, em Nova York. O crime foi assistido por vários vizinhos que estavam nas janelas dos prédios situados na mesma rua e simplesmente se omitiram.
Nessas situações, as testemunhas afirmam não querer se envolver, alegam medo de também serem vitimadas pelos agressores, e, frequentemente, esperam que outra pessoa intervenha. “É como se a responsabilidade fosse diluída socialmente: se há diversos voluntários em potencial para agir, ninguém se sente tão individualmente responsável”, diz Sarah.
Nos vestibulares
O tema já apareceu na prova de redação da FGV Direito 2018, que identificou o justiçamento como “gangsterismo” e pediu uma dissertação sobre o assunto. No mesmo ano, a redação do Centro Universitário São Camilo tinha como proposta: “justiça com as próprias mãos e a noção de barbárie em um país marcado pela impunidade”.
Segundo Vanessa Bottasso, professora de redação do Oficina do Estudante, o assunto também pode ser tema no Enem, pois se trata de “um acontecimento frequente e que mobiliza a sociedade brasileira em torno de questões como o desejo de vingança frente à escalada de violência e insegurança social.”
Confira a proposta de redação da São Camilo e os textos de apoio apresentados:
Para aprofundar e ampliar o repertório
- O livro Linchamentos: a justiça popular no Brasil, do sociólogo José de Souza Martins, é uma referência importante para quem quer se aprofundar na temática.
- O documentário A Primeira Pedra, disponível no Globoplay, faz uma reconstrução histórica da prática social dos linchamentos no Brasil e traz à tona alguns casos que foram bastante noticiados na mídia a partir da fala de sobreviventes e familiares de vítimas.
- O filme Aos teus Olhos, de Carolina Jabor, traz uma abordagem sobre os chamados linchamentos virtuais, que podem ser pensados como uma outra forma de manifestação contemporânea dessa prática de punição coletiva. Um professor de natação infantil vivido por Daniel Oliveira é acusado de abusar de um dos alunos. O longa também está disponível no Globoplay.
- Outra produção sobre o assunto é o filme O mundo não perdoa, que trata da história de um homem negro, nos Estados Unidos, acusado injustamente de homicídio e ameaçado de linchamento. Disponível no Itunes.
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