Mais trabalho, pouco recurso: desafios da ciência brasileira na pandemia
Em momento de visibilidade, pesquisadores brasileiros acumulam vitórias e muitos desafios
Em meio à pandemia, a grande expectativa por uma vacina contra a covid-19 tem aberto à ciência um espaço importante de visibilidade. A corrida que pesquisadores travam contra o tempo para vencer o vírus que já tirou a vida de milhões deixa evidente que ciência se faz em equipe, precisa de constância, e depende de recursos.
O Brasil está no grupo dos países que mais publicaram estudos sobre o coronavírus desde o início da pandemia. Das 168.546 publicações científicas relacionadas à doença, realizadas até outubro, no mundo todo, 4.029 são assinadas por pesquisadores que trabalham no país. Esse número deixa a produção brasileira na 11.ª posição no ranking mundial, superando o que foi produzido por países como Holanda e Japão.
Apesar do potencial do Brasil nessa área da ciência, por sua experiência com outras graves epidemias como Zika vírus, não foi realizada uma estratégia nacional coordenada de investimento em pesquisa e desenvolvimento para a crise gerada pelo coronavírus.
De acordo com nota técnica da Rede de Pesquisa Solidária, publicada em maio deste ano, o governo federal previu investimentos de 466,5 milhões de reais para pesquisa e desenvolvimento relacionados ao enfrentamento da doença, mas publicou apenas dois editais no valor de 60 milhões de reais, com resultados previstos para junho – um número muito baixo que dificulta a saída da crise.
A comparação de investimentos é discrepante com países como os Estados Unidos que alocou mais 6 bilhões de dólares exclusivamente para pesquisas sobre a covid-19, ou o Canadá ampliou em cerca de 12% os investimentos federais em pesquisa e desenvolvimento.
Segundo Ildeu de Castro Moreira, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), isso explica o porquê há o avanço nas pesquisas dentro do território brasileiro nos últimos anos – o que já é muito importante, sim -, mas o reflexo da inovação no país ainda é pequeno.
Em outras palavras, a maior dificuldade, com poucos recursos, é transformar a produção científica em produto tecnológico, refletindo na melhoria da condição de vida das pessoas. Assim, muitas vezes, há ótimas descobertas, mas que não tem investimentos suficientes para serem desenvolvidas.
Aspectos do problema
Ildeu aponta que uma das principais razões do problema é a ausência de política pública adequada para estimular as empresas a investirem na ciência também, além dos recursos públicos.
O especialista defende a necessidade de uma mudança de mentalidade do empresarial nacional, que precisa perceber a importância da pesquisa e desenvolvimento. “O Brasil tem muito a mentalidade de exploração das riquezas, como o café e a Amazônia, mas sem um desenvolvimento sustentável e escorado em inovação”, afirma.
Outra grande amarra para o progresso da ciência e tecnologia brasileira é a burocracia excessiva. Os muitos trâmites administrativos atrapalham a aquisição de equipamentos e materiais, atrasando o desenvolvimento, por exemplo. Segundo professores e pesquisadores ouvidos pela reportagem da Gazeta do Povo, a burocracia nas universidades públicas brasileiras tem sido um grande obstáculo e “uma das causas que leva o país às piores posições nos rankings de relevância científica”.
Apesar disso, há muito avanço científico na pandemia
Sem os recursos necessários, além da desvalorização dos pesquisadores, a sociedade também perde, já que a ciência pode ajudá-las e muito. Prova disso é o capacete Elmo, desenvolvido no Ceará. O nome faz alusão ao capacete que garantia a proteção dos guerreiros medievais. Mas dessa vez, é uma ferramenta de muita ajuda na batalha contra a covid-19.
Com o uso de um mecanismo de respiração artificial não invasivo, o equipamento, de acordo com os testes clínicos realizados, ajuda a evitar a intubação de pacientes, reduzindo em 60% a necessidade de internações em leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
O projeto foi desenvolvido pelo Governo do Ceará, por meio da Sesa, ESP/CE e Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap), Federação das Indústrias do Estado do Ceará (Fiec), Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai/Ceará), Universidade Federal do Ceará (UFC) e Universidade de Fortaleza (Unifor), com o apoio do Instituto de Saúde e Gestão Hospitalar (ISGH) e Esmaltec. Já aprovado pela Anvisa, o capacete já tem o aval para ser fabricado e comercializado em escala industrial.
Além de ajudar os pacientes de covid-19, como um legado da pandemia, o equipamento pode tratar outras enfermidades que comprometem o funcionamento dos pulmões, como pneumonia e H1N1.
Mais desafios pela frente
As pesquisas sobre o novo coronavírus vão continuar por muito tempo, assim como a batalha da comunidade científica contra os cortes e a redução de recursos. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) divulgou uma carta em defesa da ciência, educação e desenvolvimento sustentável para o século XXI.
O documento trouxe números e dados preocupantes: pela proposta orçamentária de 2021, elaborada pelo governo federal e em análise no Congresso Nacional, o Ministério da Ciência e Tecnologia terá para investimento R$ 2,7 bilhões. Isso representa uma queda de 34% em comparação a 2020, no qual o valor reservado no Orçamento federal é de R$ 3,7 bilhões. O valor atual já muito mais baixo de 2019, que contou R$ 5,7 bilhões para a área.
Cortes e perdas de recursos como essas possíveis impactam instituições de referência na esfera federal, como a Fundação Oswaldo Cruz, vinculada ao Ministério da Saúde. Vale ressaltar que a Fiocruz, tão atuante na pandemia, é responsável pela possível produção da vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford e pelo laboratório AstraZeneca.
Para Ideu, presidente da SBPC, isso se dá por conta do que ele chama de “terraplanismo econômico”: sem considerar a importância (inclusive, econômica) da ciência, os gestores, olhando apenas os números, reduzem os recursos como a melhor saída para resolver a questão.
A sociedade como aliada da ciência
Na luta pela valorização da ciência e tecnologia, a pesquisadora e médica veterinária Gabriela Ramos Leal ressalta a importância da comunicação e aproximação entre a comunidade científica e a sociedade.
Para ela, além de ajudar no combate à fake news, é papel do pesquisador comunicar melhor e aproximar das pessoas esse mundo complexo dos laboratórios para ajudar a reduzir o movimento atual forte de negacionismo da ciência. “Nossas descobertas são para construir um mundo melhor. A sociedade paga a pesquisa e ela precisa ver como ela retorna, na prática, na sua vida”, afirma a mestre e doutora em Clínica e Reprodução Animal.
Foi com esse pensamento, inclusive, que Gabriela se consagrou a vencedora da competição de comunicação científica FameLab Brasil. No concurso, ela buscou mostrar um lado da medicina veterinária que não é conhecido pela sociedade, traduzindo de uma forma mais simples o que está sendo realizado nos laboratórios e centro de pesquisas.
Em uma das etapas, ela trouxe um conceito científico de muita relevância para a atualidade e pouco falado: o desenvolvimento de soro para tratar a Covid-19 a partir de testes em cavalos.
Gabriela foi a primeira mulher e negra a vencer o concurso. Ela acredita que a forma como um jovem pesquisador é encarado pela sociedade precisa mudar: “não é só uma pessoa que vive estudando, mestrandos e doutorandos são aqueles que destinam seu tempo para pesquisar melhorias nas diversas áreas. Além disso, a pesquisa é de todos: brancos, negros, homens, mulheres, pessoas LGBT e com deficiência.
Pensando no lado positivo, o contexto da pandemia favorece essa aproximação e mudanças nas relações com a ciência, que a veterinária defende, pela visibilidade do momento. De acordo com a terceira edição do Índice Anual do Estado da Ciência (State of Science Index – SOSI), pesquisa global conduzida pela empresa de ciência e inovação 3M Company, revela que a confiança dos brasileiros aumentou durante a pandemia.
No levantamento, 89% disseram acreditar que a atividade científica precisa de mais financiamento e 88% concordam que a ciência tornará suas vidas melhores nos próximos 10 anos.
Ildeu, à frente da SBPC, diz aos jovens que gostam e sonham em fazer ciência que não desistam. Por sua vez, as autoridades brasileiras, com o apoio da sociedade, precisam criar políticas públicas de valorização para evitar a perda de grandes talentos – como a Gabriela – por falta de incentivo . “Precisamos atuar coletivamente com a perspectiva de um projeto de país diferente”.
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