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Internet: Sob o domínio da pós-verdade

Estude o conceito e as consequências da pós-verdade e das fake news

Por Redação do Guia do Estudante
Atualizado em 18 ago 2021, 12h13 - Publicado em 31 jul 2021, 00h01

“Em uma época em que as crenças importam mais do que os fatos, a disseminação de notícias falsas ganha terreno, impulsionada pela internet, pela polarização política e pela crise de confiança nas instituições, eu não ficaria surpreso se ‘pós-verdade’ (post-truth, em inglês) se tornasse uma das palavras definidoras do nosso tempo”, disse Casper Grathwohl, presidente da Oxford Dictionaries, em novembro de 2016. Na ocasião, a expressão havia sido eleita a palavra do ano pelo Dicionário Oxford, referência global para a catalogação de novos termos.

O QUE É PÓS-VERDADE?

Tirinha sobre a ideia de pós-verdade
A tirinha usa o enunciado “Penso, logo existo”, do filósofo e matemático francês René Descartes, para ironizar o conceito de pós verdade. (Shovel/ Curso 'Vaza, Falsiane'/Reprodução)

O substantivo foi definido como “relativo ou referente a circunstâncias nas quais os fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”. Isso signifca que, na sociedade atual, as interpretações e as versões de um fato teriam mais importância do que o acontecimento em si. Ou seja, a verdade factual torna-se irrelevante, e o que importa mesmo são as crenças, ideologias e opiniões.

ORIGEM DO TERMO PÓS VERDADE

Arte da mentira
O artigo a ‘Arte da mentira’ da revista The Economist popularizou o termo pós-verdade. Disponível em https://www.economist.com/leaders/2016/09/10/art-of-the-lie (The Economist/Divulgação)

A palavra “pós-verdade” apareceu pela primeira vez em 1992, na revista americana The Nation, em um artigo do dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich a respeito da Guerra do Golfo (1990-1991). O autor já apresentava a ideia de que, numa sociedade dominada pela pós-verdade, os fatos importam menos do que as crenças.

Doze anos depois, o escritor norte-americano Ralph Keyes colocou o termo no título de seu livro A Era da Pós-Verdade: Desonestidade e Decepção na Vida Contemporânea. Mas foi só em 2016, com o artigo Arte da Mentira, na revista inglesa The Economist, que a expressão ganhou popularidade. O uso do termo pela mídia de todo o mundo cresceu 2.000% desde então. Ela foi empregada para se referir a dois importantes acontecimentos de 2016 que envolveram a divulgação de notícias falsas (fake news, em inglês).

1 –  Eleição do republicano Donald Trump para a Presidência dos Estados Unidos (EUA)

Durante sua campanha, ele divulgou que o desemprego nos EUA ultrapassava os 40%; que sua oponente, a democrata Hillary Clinton, era a responsável pela criação do Estado Islâmico; que Barack Obama era muçulmano; e que o papa Francisco apoiava sua candidatura. Nenhuma dessas informações era verdadeira.

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2 – A campanha pelo Brexit – a saída do Reino Unido da União Europeia (UE)

A campanha pelo Brexit também se apoiou em informações falsas, como a divulgação de que a permanência no bloco custava 470 milhões de dólares por semana ao país. Ainda que depois essas informações tenham sido denunciadas como mentirosas, isso não foi suficiente para mudar o pensamento das pessoas – elas preferiram acreditar no que queriam.

FAKE NEWS ONTEM E  HOJE

Ilustração sobre imprensa amarela
A imprensa amarela, de M. Slackens, em que se mostra W. Randolph Hearst como um bobo da corte que divulga notícias. Publicado por Keppler & Schwarzmann em 1910. (BIBLIOTECA DEL CONGRESO DE EE UU/Divulgação)

As notícias falsas sempre existiram na história. Segundo o historiador Robert Darnton, há registros de que já na Antiguidade, no século VI, o historiador bizantino Procópio escreveu um livro com relatos falsos para atingir o imperador Justiniano. Durante o Renascimento, o escritor e jornalista italiano Pietro Aretino ficou conhecido por escrever textos que atendiam aos interesses de quem melhor lhe pagasse. Ele criou os pasquins, panfletos que criticavam figuras públicas da época e também recorriam a calúnias. No século 17  foi a vez dos canards parisienses, que traziam boatos e até notícias falsas. Na Inglaterra do século 18, o The Morning Post se popularizou ao publicar reportagens inverídicas. Foi seguido por jornais sensacionalistas em todo o mundo.

Mas, se as fake news não constituem exatamente uma novidade, qual seria então a diferença entre a pós-verdade de hoje e todas as formas de manipulação das informações que já existiram antes? Há pelo menos quatro causas que se relacionam e explicam esse novo fenômeno:

• A descentralização da informação: trazida pelas novas tecnologias de comunicação, que propiciaram o surgimento da internet e das redes sociais, o que torna barato, simples e rápido difundir notícias falsas;

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• O ambiente de forte polarização: política, que contribui para a difusão de notícias falsas com o objetivo de atingir um suposto inimigo ideológico;

• A crise de confiança: nas instituições tradicionais, como os governos e os veículos de comunicação, que vêm perdendo espaço e favorecendo a autonomia das pessoas na busca de informações;

• O fortalecimento de uma visão de mundo que relativiza a verdade e a considera secundária. Isso seria resultado de mudanças sociais e econômicas trazidas pela globalização que fragmentaram e flexibilizaram o modo de ver o mundo e propiciaram um pensamento mais individualista e imediatista.

BOLHAS VIRTUAIS

Bolha virtual
Os diferentes algoritmos das redes sociais incentivam o acesso ao conteúdo que confirmam os nossos gostos em uma espécie de viés de confirmação. Por isso, corremos o risco de não conhecermos ideias diferentes na internet. (Pinterest/Divulgação)

Foi com o advento da web que as notícias falsas encontraram um terreno fértil para se disseminar e adquiriram outra dimensão. Por meio de plataformas como Facebook, Twitter e WhatsApp, um boato ou uma mentira pode ser replicado para milhares de pessoas, em diferentes lugares do mundo, de forma ultrarrápida e em tempo real.

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Um fator que conta para que determinado post ou notícia seja mais compartilhado e tenha maior alcance ou difusão é o uso de algoritmos – fórmulas e regras matemáticas que compõem a programação do sistema. Com base no comportamento da pessoa na rede – os posts que curte, o conteúdo que publica, os produtos que busca etc. – empresas gigantes do setor, como Facebook e Google, armazenam os dados dos usuários de modo a obter um grande inventário de seus interesses e preferências. O objetivo principal seria fazer chegar a esse potencial consumidor anúncios de produtos e serviços que poderiam lhe interessar.

Mas esses algoritmos também são responsáveis por filtrar o conteúdo que chega a cada um levando em conta seus gostos e afinidades, como mostrou o autor norte-americano Eli Pariser no livro O Filtro Invisível – O Que a Internet Está Escondendo de Você.

No Google, por exemplo, duas pessoas buscando a mesma palavra simultaneamente podem ter resultados muito diferentes em função de seu perfil. Já no Facebook, você vai receber mais notícias sobre os temas de seu interesse do que outro usuário que não tem o seu histórico na rede. Mas o efeito do filtro ainda vai mais longe: ele faz aparecer no seu feed de notícias mais informações que combinam com seu ponto de vista e reforçam sua visão de mundo, não mostrando, ou exibindo de forma secundária, conteúdos que tenham ideias divergentes. E ao identificar que a interação é maior com determinados usuários, a rede social também vai privilegiar as publicações dessas pessoas.

É nesse contexto que Pariser alerta para o que chama de “bolhas virtuais” – a oferta de informações personalizadas que teria isolado as pessoas de quem pensa diferente delas. Isso sem contar a possibilidade de o próprio usuário, por conta própria, barrar contatos de cujas ideias discorde.

Pesquisas mostram que, quanto mais a pessoa está inserida nesse ambiente restrito, mais predisposta está em acreditar e em compartilhar conteúdos que confirmem suas crenças, sem se preocupar com a veracidade das informações. E os conteúdos que são mais curtidos e compartilhados têm maior alcance (e geram mais ganho com publicidade), não importando se é uma foto de gatinho, um comentário racista, uma notícia real ou uma informação falsa.

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COMO RECONHECER UMA NOTÍCIA FALSA NA INTERNET

As diferentes estratégias de desinformação e os limites da liberdade de expressão são temas da atualidade que são cobrados no Enem e vestibulares
As diferentes estratégias de desinformação e os limites da liberdade de expressão são temas da atualidade que são cobrados no Enem e vestibulares. (Getty Images/Reprodução)
Há várias maneiras de disseminar mentiras na internet. Por isso, antes de compartilhar qualquer conteúdo, é importante identificar as características de uma notícia falsa:

• não trazem a fonte da informação (de onde vêm os dados) e nem apresentam um embasamento para os dados, por exemplo, um estudo ou entrevista com especialista (que você possa procurar se realmente existe);

• em geral, não estão assinadas, pois a maioria das notícias falsas não identifica o autor – ou, em alguns casos, é alguém tão famoso que passa a despertar desconfiança;

• não foi veiculada ou repercutida por outro meio de comunicação;

Já os sites que publicam notícias falsas possuem as seguintes particularidades:

• uma URL estranha (que tenta se confundir com uma URL conhecida);

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• a parte gráfica parecida com um site tradicional de informação;

• as outras notícias e informações que estão na homepage parecem de uma publicação satírica ou tratam de um determinado tema de forma fanática;

• não há informações sobre a pessoa ou a equipe responsável por ele.

Saiu na imprensa - Cidade que inventa notícias
(BBC/Divulgação)

 

POLARIZAÇÃO IDEOLÓGICA

polarização
A polarização favorece o fortalecimento das bolhas virtuais que, por sua vez, favorecem a desinformação. Assim, aumenta a vontade de acreditar em notícias que corroboram nossas ideias, independentemente da sua veracidade. (Pinterest/Divulgação)

Ao se fechar em uma bolha ideológica e evitar o contato com o contraditório, as pessoas estariam fragilizando os ideais democráticos, que pressupõem exatamente o contrário: conviver com outros pontos de vista e construir  consensos por meio do diálogo.

Esse comportamento de disseminar o que combina com suas opiniões para atingir quem pensa de modo divergente, e sem levar em conta a qualidade das informações, é favorecido atualmente pela divisão ideológica e política que tem predominado no Brasil e no mundo, principalmente em épocas de eleições.

Na semana que antecedeu a votação  do impeachment da ex-presidente Dilma Roussef na Câmara dos Deputados, em abril de 2016 – evento marcado pela oposição entre os que defendiam e os que contestavam a permanência da dirigente –, três das cinco notícias mais compartilhadas no Facebook eram falsas, segundo o Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas e Acesso à Informação da Universidade de São Paulo. O mesmo ocorreu na eleição nos EUA, em que as notícias falsas superaram as reais em leitura, de acordo com o site BuzzFeed.

Pesquisa do Ibope divulgada em junho de 2017 mostrou que mais da metade dos entrevistados admitiu que as mídias sociais vão ter influência em sua decisão de voto nas eleições presidenciais do Brasil em 2018. Especialistas apontam para o risco de eleições acontecerem em contextos de polarização política e de ampliação do controle pelas grandes empresas de internet do que é ou não visto pelos usuários.

CRISE DAS INSTITUIÇÕES

Cartazes em protesto contra Mark Zuckerberg, em frente ao Congresso norte-americano, em abril de 2018. A inscrição na camiseta diz
Cartazes em protesto contra Mark Zuckerberg, em frente ao Congresso norte-americano, em abril de 2018. A inscrição na camiseta diz “conserte o Facebook” (Zach Gibson/Getty Images)

O presidente do Facebook, Mark Zuckerberg, anunciou em junho de 2017 que a rede social alcançou 2 bilhões de usuários por mês. Isso signifca que quase um terço da população do planeta acessa a plataforma. E grande parte desse contingente a utiliza como principal fonte de informação, especialmente num momento em que os veículos tradicionais de informação vêm perdendo credibilidade.

Segundo o estudo global Edelman TrustBarometer 2017, que mede o nível de confiança e credibilidade em 28 países, em 21 dessas nações houve queda na confiança nas quatro instituições pesquisadas: empresas, governo, ONGs e mídia. No Brasil, o governo é o setor que desperta menos confiança, mas ela também caiu nas outras três instituições.

O impacto desse descrédito no crescimento das notícias falsas também foi medido pela pesquisa: a maior parte dos brasileiros diz preferir as ferramentas de busca em vez dos meios de comunicação tradicionais para se informar, procurando ser o curador das informações que chegam até ele. Segundo os organizadores da pesquisa, a  confiança é estabelecida, sobretudo,com aqueles que pensam de forma semelhante. Outro dado que também chama a atenção é que os entrevistados estão quase quatro vezes mais propensos a ignorar informações que confirmam uma ideia com a qual não concordam, mostrando um desprezo pela verdade, ainda que baseada em fatos.

OFENSIVA CONTRA AS FAKE NEWS

Fake news
(Twitter/Reprodução)

Ao serem criticados por não terem tomado as providências necessárias contra a proliferação de notícias falsas na  rede e de ter influenciado o resultado das eleições norte-americanas, os dirigentes do Facebook e do Google minimizaram e até contestaram essas avaliações num primeiro momento. Como essas empresas ampliam a audiência e lucram com a disseminação das fake news, pesavam contra elas acusações de que não estariam reunindo esforços suficientes para conter o fenômeno.

Mas, posteriormente, com o crescimento das críticas, eles anunciaram que vão combater sites que propagam notícias falsas. Uma das formas será impedindo que essas plataformas usem sua rede de anúncios e ganhem com a publicidade. Ambos também divulgaram que trabalhariam com grupos de checagem de dados para atestar a veracidade das notícias. Essa iniciativa, denominada cross-check, já foi colocada em prática na França, com o objetivo de combater a circulação de notícias falsas antes das eleições presidenciais de maio de 2017, que deu a  vitória a Emmanuel Macron

No Brasil, no início de 2017, o Google anunciou uma iniciativa contra notícias falsas, com o lançamento de um selo de checagem de fatos. No Facebook, se um post é identificado como inverídico, ele tem sua relevância e seu alcance bastante reduzidos.

Desde fevereiro de 2017 tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) 6.812/2017 que caracteriza como crime a divulgação ou o compartilhamento de informação falsa ou incompleta na internet em detrimento de pessoa física ou jurídica. A pena prevê de dois oito meses de detenção e o pagamento de multa.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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