Entenda a crise da Cinemateca Brasileira
Instituição corre o risco de perder todo o seu acervo, um dos maiores do mundo
Foi uma tragédia anunciada – tal como o Museu Nacional. No fim da tarde de quinta-feira (29), o depósito da Cinemateca Brasileira, na Vila Leopoldina, em São Paulo, pegou fogo. Não é a primeira vez que o acervo da instituição sofre danos em decorrência de um incêndio. Outro recente aconteceu em 2016, em sua sede, na Vila Mariana.
No ano passado, o edifício da Vila Leopoldina já havia sido danificado por uma enchente. Segundo a BBC, mais de 113 mil DVDs foram danificados na ocasião. “Foram danificados, por exemplo, 382 cópias de São Paulo, S/A (1965), de Luis Sérgio Person, 270 cópias de Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, 198 DVDs contendo O Homem do Sputnik (1959) e 250 cópias de Assim era a Atlântida (1975), ambos de Carlos Manga”, afirma a reportagem.
Ainda não se sabe o que fora danificado e perdido no atual incêndio – mas deve-se esperar pelo pior. Isso porque parte dos rolos de filmes da Cinemateca está em nitrato de celulose, um produto altamente inflamável e de difícil contenção depois que o fogo se inicia. Por essa razão, os filmes devem permanecer em estado de refrigeração, não podendo sequer sofrer com variações, mesmo pequenas.
++ Veja a repercussão do incêndio na Cinemateca Brasileira
Como foi possível que, menos de três anos depois do incêndio no Museu Nacional, estejamos vivendo algo semelhante? GUIA reconstitui o que está acontecendo nos últimos tempos, a seguir.
A crise da Cinemateca
A Cinemateca Brasileira é um órgão ligado à Secretaria do Audiovisual, por sua vez ligada à Secretaria Especial da Cultura. Até dezembro de 2019, a sua gestão estava a cargo da Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto.
O contrato de gestão da Cinemateca era um anexo ao contrato da Associação com o Ministério da Educação para gestão da TV Escola. Com o fim do contrato do Ministério da Educação com a Acerp, em dezembro, para a gestão da TV Escola, criou-se um limbo.
Até abril de 2020, a Cinemateca continuava a ser sustentada com as verbas da Acerp, que esperava estabelecer um novo contrato de gestão com a instituição.
Mas o contrato, apesar das promessas, nunca se firmava. E a situação se agravava. Atrasos na conta de luz – cujo custo mensal variava entre R$ 100 e R$ 200 mil – foram renegociados com a empresa fornecedora.
No final de maio do ano passado, o Ministério Público Federal de São Paulo encaminhou um ofício à Secretaria Especial da Cultura cobrando “informações a respeito da possível ausência de repasse orçamentário que vem prejudicando o funcionamento da Cinemateca Brasileira e causando danos a acervo audiovisual mantido pela citada entidade.”
Diante da falta de resposta da Secretária, o MPF-SP entrou com uma ação civil pública contra a União Federal para que fossem tomadas medidas emergenciais pela preservação do acervo e do edifício. A liminar, inicialmente negada, foi concedida somente em fevereiro deste ano pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3). Em maio, houve uma audiência de conciliação na qual foi decidido que o governo teria até 45 dias para recompor a instituição. Não há, até o momento, mais informações a respeito.
Outras ações
Embora ligada à Secretaria do Audiovisual e ao ministério que ora responde, o do Turismo, a Cinemateca, desde 2018, é gerida por Organização Social (OS), ou seja, tem uma gestão terceirizada. Ainda no ano passado, houve rumores que a entidade seria reestatizada. Com a reestatização, a Cinemateca voltaria a ter quadros fixos ligados à burocracia pública, além de outros eventuais colaboradores terceirizados e prestadores de serviços.
Mas essa proposta – que solucionaria não apenas o impasse em torno da Cinemateca, mas também do futuro da atriz Regina Duarte, ao deixar a Secretaria Especial da Cultura – também não foi adiante.
A Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC), responsável por sua gestão até 2013, buscou um acordo com o Governo Federal para assumir os trabalhos até que uma nova OS fosse escolhida. A expectativa era que os trabalhos tivessem início em janeiro, mas tampouco foi adiante.
História da Cinemateca e acervo
A Cinemateca Brasileira foi criada em 1940 com o nome Primeiro Clube de Cinema de São Paulo por um grupo de intelectuais paulistas que reunia o crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes, o crítico literário Antonio Candido e o crítico teatral Décio de Almeida Prado.
Em 1956, ao desligar-se do Museu de Arte Moderna de São Paulo, passa a chamar-se Cinemateca Brasileira. Em 1984, a instituição foi cedida ao governo federal.
O acervo – o maior da América do Sul, com 250 mil rolos – conta com filmes caseiros, cinejornais, registros históricos documentais, produções seriadas e quase toda a produção cinematográfica do país, desde 1897.
Entre os destaques do arquivo estão negativos originais dos filmes de cineastas como Mazzaropi, Glauber Rocha e Anselmo Duarte, único diretor brasileiro premiado com a Palma de Ouro em Cannes, pelo Pagador de Promessas (1962). Também fazem parte do acervo obras raras, como o filme Limite (1931) do diretor Mário Peixoto, que levou décadas para ser restaurado pela instituição.
O acervo conta ainda com a animação Frivolitá, de Luiz Seel, produzida em 1930 e que já foi considerada perdida. Marcos do cinema popular brasileiro, como os filmes dos estúdios Vera Cruz e Atlântida, criados nos anos 1940, também compõem o arquivo, além de parte da produção audiovisual da extinta TV Tupi.
Ouça uma entrevista sobre o incêndio da Cinemateca com o cineasta Cacá Diegues, diretor de grandes filmes brasileiros como Bye Bye Brasil, Xica da Silva e O Grande Circo Místico: