Elisa de Oliveira Flemer, 17, de Sorocaba (SP), teve uma liminar concedida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo para se matricular no curso de Engenharia Civil na Universidade de São Paulo (USP). A família da estudante entrou com o processo após a jovem ter sido impedida de ingressar no curso. O motivo? Elisa estudou sob o regime de homeschooling
O termo inglês diz respeito à prática da educação domiciliar. A jovem, que não frequenta uma escola desde 2018, estuda 6 horas por dia em casa desde muito antes do formato de educação à distância ser adotado por conta pandemia. Diferentemente do EAD, porém, Elisa estuda totalmente por conta própria.
Em entrevista, ela explica que conheceu o homeschooling pela internet e desde então tem prestado vestibulares para testar seus conhecimentos. Ela recebeu o apoio da família que, após o laudo neuropsicológico apontar que a jovem é portadora do espectro do autismo sem deficiência intelectual e que possui uma inteligência acima da média, concordou que o formato seria o mais adequado para o seu quadro clínico.
Antes de garantir o quinto lugar no Sisu em Engenharia Civil da USP, a estudante já havia passado em uma universidade particular e tirado quase mil na redação do Enem. O seu possível ingresso na universidade, sem ter concluído o Ensino Médio de forma tradicional, contribui para a discussão da implementação do homeschooling no Brasil.
O que é homeschooling?
O estudo domiciliar consiste em um formato educacional em que o estudante não frequenta a escola tradicional e estuda em casa. Em grande parte dos casos, os pais desempenham o papel dos professores.
A prática é legalizada em 65 países como Estados Unidos, França, Noruega, Austrália, Portugal, Rússia e Nova Zelândia. No entanto, em países como a Alemanha e a Suécia, a prática é considerada um crime.
De acordo com uma pesquisa feita pela Home School Legal Defense Association (HSLDA), há pelo menos 2 milhões de famílias adeptas ao modelo de ensino nos Estados Unidos. Segundos a pesquisa, os educados em casa têm maior desempenho acadêmico e 74% deles entram em uma universidade.
Homeschooling no Brasil
No Brasil, o ensino domiciliar vai na contramão da lei que determina que todo brasileiro de 4 a 17 anos deve frequentar uma escola. Mesmo assim, o país tem defensores do homeschooling e a aplicação do modelo gera debates no Supremo Tribunal Federal (STF) há muito tempo.
Em 2018, o STF declarou que a educação domiciliar não é um ato inconstitucional. Embora a lei não proíba explicitamente o homeschooling, ela também não a respalda. Em 2020, o Distrito Federal foi o primeiro a regulamentar e liberar a prática.
Mesmo em um cenário de crescimento de evasão escolar e falta de estrutura no ensino à distância causada pela pandemia, a proposta de regulamentação do ensino domiciliar será tratada com urgência pela Câmera dos Deputados – com previsão de resolução ainda no primeiro semestre deste ano.
Campanha bolsonarista
A proposta é a única da área da educação presente no rol das 34 matérias consideradas prioritárias no Congresso Nacional pelo governo Bolsonaro. A bandeira do ensino domiciliar, um dos pilares da campanha bolsonarista, ganha apoio da bancada evangélica e da ala conservadora.
Alguns defensores acreditam, como afirma o deputado federal Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), que o formato seja “o caminho de a gente livrar as famílias da forma agressiva pela qual a esquerda tomou conta da educação”.
++ VEJA: Bandeira bolsonarista, o ensino em casa entra em discussão no Congresso
Educação personalizada
Um dos principais pontos daqueles que defendem a prática do homeschooling é o direito da família decidir a maneira como seus filhos são educados. Em momentos de polarização política e a censura de livros didáticos, a youtuber e estudante de psicologia Bianca Colombari, 25, acredita que o vínculo familiar deve ser o protagonista na formação de toda criança.
“Os pais são os que mais amam e conhecem seus filhos, e sempre irão carregar a responsabilidade pela segurança e bem-estar deles”, diz Colombari, que é mãe de duas meninas. “Eu acredito que a liberdade de escolher em favor dos seus filhos é o argumento mais importante na discussão do homeschooling”, afirma.
Ela não vê a relação entre a escola tradicional e a escola domiciliar como uma disputa. As duas teriam vantagens, caberia a cada família decidir quais aspectos atendem melhor suas necessidades. “Acredito que, se liberada ou regulamentada a prática do homeschooling no Brasil, o cenário [da educação brasileira] melhoraria”, explica.
Segundo ela, as salas de aula superlotadas, a má distribuição do investimento público e o próprio ambiente escolar, que “é visto por muitos pais como um depósito de crianças”, contribui para que se perca “muito do sentido educacional” das escolas.
A universitária explica que o estudo domiciliar é uma maneira de incentivar a autonomia e o posicionamento ativo nas crianças, atendendo suas necessidades e interesses específicos. “Na escola, a criança aprende de forma passiva; o conteúdo é apenas inculcado, repetido até fazer as crianças fixá-los”, diz.
Uma educação que converse com o dia a dia e as características individuais de cada um seria a ideal. Nesse sentido, o papel dos pais como educadores seria o de incentivar e guiar a busca pelo conhecimento nos filhos. “É um estilo de aprendizagem focado nos pontos fortes de cada criança, baseado na investigação, curiosidade e autonomia”, diz.
Carência de diferentes perspectivas
Para os contrários à implementação do ensino domiciliar, a falta de convivência com outros indivíduos além do núcleo familiar pode prejudicar a formação da criança.
À Veja, a diretora executiva da ONG Todos pela Educação, Priscila Cruz, diz que “a ideia de homeschooling é pautada pelo fim do convívio com o diferente e com a diversidade do ambiente escolar”. Segundo ela, a falta da convivência com o outro expõe a criança a um cenário de isolamento e a apenas um modo único de pensar.
“A educação [escolar] passa pela aquisição de conteúdo e também ensina valores como diversidade, frustração (o ganhar e perder), compartilhamento, defesa. Isso é impossível em casa”, explica Silvia Colello, educadora e professora de psicologia da educação na Universidade de São Paulo (USP), à Claudia.
Carlos Roberto Jamil Cury, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), também à Claudia, adiciona que “questões como a diversidade sexual e a homossexualidade estão no mundo. Não adianta achar que, só porque você não fala do assunto, a criança não vai saber”.
Ele esclarece que a falta de contato com opiniões e comportamentos diferentes durante a formação do indivíduo traz consequência na vida adulta. “Depois, a pessoa cresce, vai para o mercado de trabalho e se depara com desafios como trabalhar em grupo e aceitar a orientação de um supervisor sem estar preparada”, explica.
Além dos motivos pautados pela formação e desenvolvimento do individuo, há também o receio do homeschooling dificultar a identificação de casos de violência doméstica, trabalho infantil e abuso sexuais.
A deputada Luísa Canziani (PTB-PR), que toma a frente da proposta, afirmou em entrevista que o responsável pela educação da criança no formato domiciliar deve “apresentar certidões criminais e não pode ter sido condenado ou estar cumprindo pena por crimes hediondos, tráfico de drogas, delitos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e na Lei Maria da Penha de violência”.
Ainda não há um consenso sobre a possibilidade de um preceptor ser contratado pelos responsáveis do ensino para ser o educador das crianças.
Na internet, mesmo antes de qualquer decisão do STF, já é possível comprar materiais didáticos e cursos preparatórios para o ensino domiciliar, boa parte ligada a alguma instituição religiosa. Não há, porém, informações claras se os materiais seguem a Base Nacional Curricular Comum (BNCC) estabelecida pelo Ministério da Educação.