No dia 22 de abril de 1500, a esquadra comandada pelo fidalgo português Pedro Álvares Cabral ancorou em frente a um monte, batizado de Pascoal, no litoral Sul do atual estado de Bahia. Apesar da terra já ser habitada por povos indígenas há milhares de anos, a data foi tida na História, por muito tempo, como o dia do descobrimento desse território que hoje é o Brasil. Mais tarde, o termo passou a ser questionado por historiadores e movimentos sociais, em uma discussão que repercute até hoje.
Raphael Tim, professor de história do Curso Anglo, conta que a utilização do termo “descobrimento” para falar da chegada dos portugueses nas terras sempre foi um tema controverso. A discussão ganhou força em 2000, ano marcado por celebrações oficiais dos 500 do Brasil.
Descobrimento?
Tim defende que, como qualquer conceito histórico, “descobrimento” carrega uma parcela de verdade e outra passível de questionamentos. “Se você considerar a mentalidade dos europeus nos séculos 15 e 16, eles estavam efetivamente descobrindo um novo lugar [a América]”, esclarece o professor. A adesão ao termo por tanto tempo, segundo Tim, explica-se pela produção historiográfica e a identidade nacional brasileira terem sempre seguido parâmetros eurocêntricos.
Por outro lado, o professor diz que é um erro histórico sustentar a versão de descobrimento nos dias atuais. No contexto da época era aceitável, mas a definição não cabe mais em pleno século 21. “O que houve foi uma invasão, já que havia cerca de 60 e 70 milhões de povos indígenas habitando a América antes da chegada dos europeus”, afirma.
Mirtes Timpanaro, coordenadora de História do Colégio Rio Branco, reitera o uso equivocado da ideia de que foi Cabral e sua tripulação que descobriram o território brasileiro. Além dos indígenas que viviam ali, historiadores apontam documentos da época que indicam que outros navegadores já conheciam as terras brasileiras.
“Na verdade, a chegada dos portugueses foi um momento de descobertas entre dois grupos: estrangeiros e nativos. Esse encontro modificou ambos os lados, mas os indígenas sofreram perdas irreparáveis”, diz Mirtes. O processo de colonização consistiu no extermínio das populações indígenas, tanto pelos conflitos violentos, quanto pelas doenças trazidas pelos europeus.
“Invasão” e outras revisões
Tim alerta que existe uma ideia negativa e, muitas vezes, equivocada, em relação ao revisionismo histórico. O professor explica que a História, por essência, passa por revisões permanentemente. Como ciência, ela vai mudando seus parâmetros de critérios e incorporando novas pesquisas e novos documentos.
Essa revisão é muito favorável para a produção historiográfica, defende o professor. Um exemplo é a própria questão do descobrimento. “Esse conceito não dá conta de responder perguntas importantes como: quem eram os povos que estavam aqui antes? Quais eram as diversidades entre eles? O que eles faziam antes da chegada do colonizador?”, explica Tim, que trata o acontecimento com os seus alunos usando a palavra “invasão”.
Mirtes dá o exemplo de dois outros termos que foram revistos ao longo da história. O primeiro é a troca da palavra “escravos” por “escravizados”. Em um texto para o Jornal da USP, Eunice Prudente, professora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo explica a diferença: “Não há, nunca houve e nem haverá escravos. O ser humano, sob violência física ou simbólica, tem sido escravizado, mas não escravo. O escravo é um ser inerte convencido de sua inferioridade face ao opressor, subordinado em todas as esferas da vida. Isso, nenhum ser humano o é”.
A outra mudança de nomenclatura é de “índio” para “indígena”. O termo “índio”, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), deriva de uma confusão cometida por Cristóvão Colombo, tido como “descobridor” das Américas. Ao chegar no continente ele acreditava estar, na verdade, nas Índias, e por isso os povos que aqui habitavam foram genericamente nomeados “índios”. O termo, de acordo com lideranças importantes destes povos, também é responsável por perpetuar estereótipos e até mesmo violências contra essa parcela da população, como explica esta outra reportagem do GUIA DO ESTUDANTE.
Revisionismo ideológico
Tim esclarece que o problema é quando essa revisão da história é distorcida e traz, meramente, um viés ideológico – sem fundamentação científica. É o que ficou conhecido por estudiosos como revisionismo ideológico.
“Nesse caso, ele não está revendo determinados eventos ou conceitos históricos sob a luz de novas pesquisas. Mas, sim, deturpando alguma passagem da história sem fundamentação documental”, explica o professor do Anglo, que diz que o maior exemplo dessa questão são os grupos que negam o Holocausto. Eles negam todos os documentos, pesquisas e relatos orais sobre a tentativa da Alemanha nazista de exterminar judeus europeus durante a Segunda Guerra Mundial.
Outro exemplo, que vem ganhado destaque na mídia nos últimos anos e que chegou a ser tema de redação, é a discussão sobre monumentos que homenageiam personagens históricos reconhecidamente escravagistas e colonialistas. Essas estátuas tornaram-se alvo frequente de protestos.
Muitos apontam que a derrubada ou a simples remoção destes monumentos dos lugares onde estão deveria ser lida como uma tentativa de revisionismo histórico, ou uma negação e silenciamento do passado. A tese é rebatida por Raphael Tim, que acredita que os monumentos em si promovem um revisionismo da história: “você está pegando uma passagem do passado, de assassinato, de opressão, escravidão e falando que ela é algo bonito”.
O professor defende que a realocação dessas estátuas de vias públicas para outros locais, como museus e centros de conservação. Assim, ainda poderiam ser objeto de estudo e poderiam servir como exemplo e lição para que esses eventos históricos não voltem a se repetir.
+ Tema de redação: a destruição de monumentos como forma de protesto
Como o debate aparece no vestibular
Tim afirma que o debate sobre o descobrimento ou invasão do Brasil é um aspecto já bem consolidado nos vestibulares. O professor avisa que o termo “descobrimento” ainda pode aparecer nos enunciados, e caso seja usado pelo estudante na redação ou em uma resposta dissertativa, não será, necessariamente, considerado um erro. O importante é que o estudante entenda o contexto histórico e esteja a par da discussão.
Em relação ao conteúdo cobrado nas provas, é necessário que o candidato reconheça a diversidade dos povos indígenas, tópico que aparece muito nas questões, além de compreender o que significou a chegada do colonizador no Brasil e o choque cultural que ocorreu. Ainda nesse contexto, é preciso conhecer as características e a força da expansão marítima portuguesa.
Mais do que estar preparado para as questões sobre o assunto, entrar em contato com discussões sobre revisões históricas é um exercício para entender o Brasil, observa Mirtes. “Trata-se de se apropriar da história do país, não só da narrativa “supostamente heróica”, mas a história mais real, cheia de erros e desencontros”, diz a professora. “Só assim vamos entender que Brasil é esse, ainda tão preconceituoso, e responder algumas perguntas, como: por que essa pobreza está nas periferias de São Paulo e nos morros do Rio de Janeiro? Por que os presídios contam com o número alto de negros? O que aconteceu com os escravizados e o que eles receberam em troca?”, completa.
Para saber mais
A pedido do GUIA DO ESTUDANTE, o professor Tim indicou quatro livros para quem quiser se aprofundar no tema e ampliar o debate. Confira!
1. Ideias para adiar o fim do mundo, de Ailton Krenak
2. Índios no Brasil, de Manuela Carneiro da Cunha
3. Os índios antes do Brasil, de Carlos Fausto
4. Conquistadores, de Roger Crowley
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