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Desavença modernista: por que Monteiro Lobato cancelou Anita Malfatti?

Em 1917, o autor publicou uma dura crítica sobre a exposição da artista. Entenda como essa manifestação influenciou a Semana de 22, marco do modernismo

Por Luccas Diaz
Atualizado em 23 Maio 2022, 07h28 - Publicado em 18 fev 2022, 15h46

Se em pleno 2022 as redes sociais se tornaram o espaço privilegiado para quiproquós, altercações, textões e outras tretas, na era pré-internet a situação era um pouco mais complicada. Na falta de um celular à mão ou de um feed que instasse “No que você está pensando, fulano?”, o que faziam os descontentes? Publicavam textão, mas no jornal. Ainda mais quando um dos envolvidos já era uma voz conceituada na elite pensante da época, em suma, um real influencer.

E foi isso que Monteiro Lobato fez. Em dezembro de 1917, após visitar a “Exposição de Pintura Moderna”, organizada e protagonizada por Anita Malfatti, em São Paulo, o autor soltou os cachorros em sua coluna no jornal O Estado de S. Paulo para falar sobre a “arte anormal” que a artista estava trazendo para o Brasil.

Na crítica chamada originalmente de “A propósito da exposição Malfatti”, mas que ficou conhecida como “Paranoia ou mistificação?”, Lobato condena veementemente as 53 obras expostas, a maioria pintada por Malfatti durante uma viagem aos Estados Unidos.

Neste texto, o GUIA conta o que diz, afinal, uma das cartas abertas mais polêmicas da história da arte brasileira. Também conversamos com um professor de literatura para entender o que a reação de Monteiro Lobato diz sobre o cenário artístico, político e social do país no momento de gênese do modernismo.

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O que está escrito em “Paranoia ou mistificação?”

Monteiro Lobato
O autor de “Sítio do Picapau Amarelo” era colunista no jornal O Estado de S. Paulo (Wikimedia Commons/Reprodução)

O artigo começa com o autor afirmando que existem duas “espécies” de artistas. A primeira delas seria aquela “composta dos que vêem normalmente as coisas e em consequência disso fazem arte pura, guardando os eternos ritmos da vida, e adotados para a concretização das emoções estéticas, os processos clássicos dos grandes mestres”.

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Como foram, segundo Lobato, Rafael Sanzio, Rembrandt, Auguste Rodin, Peter Paul Rubens e Praxiteles (famoso escultor da Grécia Antiga).

A outra seria “formada pelos que vêem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva”.

O autor enxerga a arte dessa segunda classe de artistas como resultado do cansaço, do sadismo e da decadência os modernistas, para ele, estão incluídos na lista. Em sua visão, para nada mais servem do que “desnortear, aparvalhar o espectador”. Seriam como “estrelas cadentes, brilham um instante, as mais das vezes com a luz de escândalo, e somem-se logo nas trevas do esquecimento”.

Lobato não poupa impropérios para deixar claro o seu desprezo sobre a então nascente arte moderna. Para ele, nada a diferencia das pinturas feitas por pacientes em hospitais psiquiátricos. “A única diferença reside em que nos manicômios esta arte é sincera, produto ilógico de cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses”, escreve, ressaltando a falta de autenticidade dos artistas modernistas.

Os responsáveis por esse movimento, segundo o autor do Sítio do Picapau Amarelo, seriam os “americanos malucos” que se deixaram levar pelas palavras da imprensa. Até mesmo a crítica especializada não ficou de fora do radar do escritor: “teorizam aquilo com grande dispêndio de palavrório técnico, descobrem nas telas intenções e subintenções inacessíveis ao vulgo, justificam-nas com a independência de interpretação do artista e concluem que o público é uma cavalgadura e eles, os entendidos, um pugilo genial de iniciados da Estética Oculta”.

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Nos momentos em que cita diretamente a “srta. Malfatti”, Lobato expressa um teor quase paternalista. Não se acanha em dizer que a jovem possui um talento vigoroso, “fora do comum”, que é “inventiva” e “original”. Mas assume que ela foi “seduzida pelas teorias do que ela chama arte moderna”, colocando todo o seu talento “a serviço duma nova espécie de caricatura”.

Malfatti havia acabado de chegar de uma viagem aos Estados Unidos, onde estreitou suas relações com os expressionistas. A aproximação com estes artistas já havia começado em sua viagem anterior, à Berlim – roteiro diferente daqueles feitos pelos artistas brasileiros, que costumavam passar temporadas na França ou na Itália. Outras vanguardas como futurismo, cubismo e impressionismo ainda não haviam aportado com força no Brasil.

Na conclusão de sua crítica sobre a exposição de Malfatti, é possível notar que Lobato acreditava estar fazendo um favor a ela, afirmando que o “verdadeiro amigo de um artista não é aquele que o entontece de louvores, e sim o que lhe dá uma opinião sincera, embora dura”.

Algumas análises apontam ainda certo machismo por parte do escritor, já que em alguns trechos afirma que se Malfatti fosse “apenas uma ‘moça que pinta’”, sem grandes talentos, não seria “merecedora da alta homenagem que é tomar a sério o seu talento dando a respeito da sua arte uma opinião sinceríssima”. Para ele, “os homens têm o vezo de não tomar a sério as mulheres. Essa é a razão de lhes darem sempre amabilidades quando elas pedem opinião.”

Caso tenha ficado curioso para saber quais obras de Malfatti estavam expostas, algumas estão reunidas neste link. Já para ler a crítica completa de Lobato à Anita Malfatti, você pode acessá-la aqui.

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Aversão a “Picasso e Cia.”

Obras de Malfatti
Entre as obras expostas na mostra, estavam “A estudante russa” (ca.1915) e “O Japonês” (1915-1916) (MAC USP/Reprodução)

A crítica de Monteiro Lobato revela uma visão conservadora com relação às artes visuais. O que pode soar estranho, já que, como escritor, desenvolveu importantes contribuições para literatura considerada modernista.

“O autor não era adepto do Modernismo, por acreditar – equivocadamente – que seus precursores e a renovação estética que se propunham afastaria as manifestações artísticas de temas de interesse dos brasileiros”, explica o professor de literatura e autor do material didático do Anglo, Maurício Soares Filho.

“A principal crítica do texto ‘Paranoia ou mistificação’ se refere ao abandono da preocupação da artista em representar a realidade de forma tradicional”, afirma. “Essa atitude soava para Monteiro Lobato como uma tentativa de imitar artistas que despontavam na Europa à época”.

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Para Lobato, os artistas que se nomeavam modernos no Brasil eram como bajuladores e copiadores da arte europeia vigente.

De acordo com o professor, quando Lobato menciona os artistas que “veem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes” está se referindo ao abandono da mimesis aristotélica, ou seja, da negação da necessidade de representação fiel da realidade nas artes visuais.

O curioso é que, ainda na infância, Lobato tinha o desejo de ser artista plástico. Nascido na cidade de Taubaté, interior de São Paulo, era neto de um visconde e foi impedido pela família de seguir caminho artístico, tendo se formando, então, em Direito pelo Largo São Francisco.

Qual foi a reação da “srta. Malfatti”?

Patrícia Galvão, Anita Malfati, Benjamin Peret, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Elsie Houston, Alvaro Moreyra e Eugênia Álvaro Moreyra
Patrícia Galvão, Anita Malfati, Benjamin Peret, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Elsie Houston, Alvaro Moreyra, Eugênia Álvaro Moreyra (Acervo MIS/Reprodução)

Não há registros de que Anita Malfatti tenha respondido a Monteiro Lobato. Sua exposição ficou em cartaz até janeiro, mas é inegável os impactos da crítica do escritor na carreira da jovem pintora.

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“A artista tinha conseguido vender algumas de suas telas na noite de abertura da exposição de 1917. Ela precisava desse dinheiro para pagar um empréstimo que fizera para custear seus estudos na Alemanha e nos Estados Unidos, mas alguns compradores desistiram da compra após a publicação da crítica no dia seguinte”, conta o professor.

Além de dívidas, há quem diga que a recepção da crítica alterou a rota do trabalho de Malfatti.

“Ainda assim, alguns críticos afirmam que a aproximação de uma pintura mais realista que representasse o Brasil, se afastando das propostas das vanguardas, teria sido uma opção de Anita, apenas desencadeada pelo Monteiro Lobato”, explica.

Influência para a Semana de 22

Mário de Andrade, Anita Malfatti e amigos, em 1922.
(Arquivo Mario de Andrade do Instituo de Estudos Brasileiros-USP/Reprodução)

O debate levantado por Monteiro Lobato em seu texto aqueceu as discussões na comunidade artística brasileira da época.

Enquanto alguns concordaram com ele, outros agiram em defesa de Malfatti e publicaram artigos a favor da arte moderna e da pintora. Oswald de Andrade e Mário de Andrade, alguns destes defensores, futuramente também se consolidariam como grandes figuras do movimento modernista no Brasil.

“A reunião de artistas em torno de Anita em função da publicação de Monteiro Lobato foi a semente para que o diálogo sobre artes avançasse. A Semana de Arte Moderna é uma das consequências dessa aproximação de pessoas interessadas no assunto, com o apoio de uma elite aristocrata que contribuiu para realizar o evento”, diz o professor.

A Semana, que ocorreu entre 13 e 17 de fevereiro de 1922, cinco anos depois do texto de Lobato, é considerada um marco referencial para a arte moderna no país.

“De forma geral, a arte moderna (aqui abordando o que se considera a 1ª fase do Modernismo brasileiro) tem a preocupação de dialogar criticamente com a realidade do país, explicitando características e contradições e convidando o público a refletir sobre essa realidade a partir da provocação apresentada tanto nas obras visuais quanto nos trabalhos literários”, explica.

Anita hesitou em participar da Semana, mas cedeu aos pedidos de Mário e Oswald de Andrade.

Em 2017, o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) realizou a exposição “Anita Malfatti: 100 anos de Arte Moderna”, comemorando o centenário da polêmica exposição de 1917.

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