Cancelamento: fãs não sabem como lidar com a autora de Harry Potter
Acusada de transfobia, J.K. Rowling divide a internet
A criadora da saga de livros Harry Potter, J.K. Rowling, é acusada de transfobia pelos comentários em seu perfil no Twitter sobre “mulheres de verdade”. O estopim do “cancelamento” da escritora veio quando foi anunciado que o protagonista de seu novo livro, Troubled Blood, será um assassino em série que ocasionalmente se veste de mulher para atrair suas vítimas.
Em dezembro de 2019, Rowling demonstrou apoio ao polêmico caso da funcionária Maya Forstater, que foi demitida de uma instituição internacional após compartilhar em suas redes sociais comentários de oposição à proposta do governo britânico que facilitaria a cirurgia de redesignação sexual para os transgêneros.
De lá para cá, o posicionamento da criadora do Harry Potter se tornou explícito. Ela postou no Twitter uma foto usando uma camiseta escrita “Essa bruxa não queima”, pertencente a uma loja que, entre seus produtos, comercializa itens estampados com frases como “Ideologia trans invisibiliza mulheres”, “Transativismo é misoginia” e “Mulheres trans são homens”.
Em outubro, mais de 1.200 autores se uniram para assinar uma carta aberta em defesa dos direitos transexuais e criticando a postura de J.K. Nomes como Neil Gailman, Stephen King, Margaret Atwood, John Green e Roxane Gay assinaram um texto que tem como principal objetivo apoiar a comunidade trans e não-binária.
“Nós somos escritores, editores, jornalistas, agentes, e profissionais de múltiplos ramos do mercado editorial. Nós acreditamos no poder das palavras. Nós queremos fazer nossa parte para ajudar a moldar o curso da história na direção da justiça. […] Seus pronomes importam. Vocês importam. Vocês são amados.”
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Em outra carta com 300 autores do Reino Unido e da Irlanda, o texto falava sobre “vidas não-binárias são válidas, mulheres trans são mulheres, homens trans são homens, direitos trans são direitos humanos”.
“Nós somos escritores, editores, jornalistas, agentes, e profissionais de múltiplos ramos do mercado editorial. Nós acreditamos no poder das palavras. Nós queremos fazer nossa parte para ajudar a moldar o curso da história na direção da justiça. […] Seus pronomes importam. Vocês importam. Vocês são amados.”
Carta aberta de autores em apoio dos direitos transsexuais
O que é Radfem?
Assim como a loja da camiseta, J.K. Rowling se autoproclama uma radfem; isto é, defensora de uma vertente do feminismo tida como radical. que não enxerga mulheres trans como mulheres “de verdade”. A relação entre essa parcela do movimento feminista e a comunidade transexual é conturbada e frequentemente motivo de discussão nas redes sociais.
Em junho deste ano, Rowling publicou uma carta aberta em seu website defendendo o seu direito de falar sobre temas transexuais e o seu envolvimento com a causa, revelando que é uma sobrevivente de abuso doméstico e agressões sexuais. “Como toda outra sobrevivente de abuso doméstico e abuso sexual que conheço, sinto nada além de empatia e solidariedade por mulheres trans que são abusadas por homens”, escreveu a autora.
No mesmo texto, porém, ela afirma que receia pela crescente facilitação das cirurgias de afirmação de gêneros e que teme pelas mulheres cisgêneros: “Ao mesmo tempo, não quero que quem nasceu como garota fique menos segura. Quando você abre as portas de banheiros e vestiários a qualquer homem que acredita ser uma mulher – e, como eu disse, certificados de confirmação de gênero podem agora ser dados sem necessidade de cirurgia ou hormônios – então você abre a porta para qualquer e todo homem que deseje entrar. Essa é a simples verdade.”
Mas afinal, o que é transfobia?
Toda aversão ou discriminação contra transexuais, transgêneros ou travestis é chamada de transfobia. Transgênero é a pessoa que nasceu em um gênero diferente de seu sexo atribuído, justamente ao contrário do cisgênero. No Brasil, levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) revela que 163 pessoas trans foram assassinadas em 2018. Segundo a ONG Transgender Europe (TGEu), o Brasil lidera o ranking de países com mais registros de homicídios de pessoas transgêneras.
O que pensam os fãs de Harry Potter
As respostas da comunidade Potterhead, nome dado aos fãs dos livros e filmes da saga Harry Potter, são divergentes. Parte defende que mesmo discordando de posicionamentos de Rowling, a história criada por ela tem luz própria e não deve sofrer interferência das ações da autora na vida real. Mas também há um grupo que “cancelou” a escritora e afirma ser inviável continuar idolatrando uma pessoa que expressa comentários transfóbicos.
Nas redes sociais, fãs criam memes tirando a autoria dos livros de Harry Potter de Rowlling e imaginando outras personalidades como escritoras do bruxinho: a cantora Britney Spears, a vocaloid Hatsune Miku e até mesmo a intérprete de Hermione nos filmes, Emma Watson, já assumiram a maternidade de Harry Potter em meme dos fãs.
Good thing we don’t have to pay attention to JK Rowling because Britney Spears wrote Harry Potter #RIPJKRowling pic.twitter.com/oqko66Jmi4
— Britney Fan (@BritneyHiatus) September 15, 2020
A questão de associar ou não a obra com o seu autor é antiga e pressupõe muitas camadas de reflexão. O que fazer quando seu autor favorito te decepciona? Não é uma pergunta fácil, mas há três possibilidades, além do cancelamento.
1 – Separar o autor da obra
A geração nascida na década de 1990 acompanhou os lançamentos dos livros e dos filmes da saga Harry Potter anualmente nas livrarias e nos cinemas, com o primeiro livro da saga publicado em 1997 e o primeiro longa em 2001. Harry, Rony e Hermione fizeram desde então parte da imaginação de crianças e adolescentes ao redor do mundo, que se encantavam com o ambiente mágico criado pela autora.
Elizabeth Pombo é uma delas. A jovem universitária de 22 anos conta que lembra quando foi apresentada ao universo da escola de magia de Hogwarts: “Eu comecei a ver Harry Potter muito pequena, com uns três ou quatro anos, tinha o VHS da Pedra Filosofal”. A jovem se lembra de acompanhar e ficar ansiosa para o lançamento dos próximos filmes: “Lembro da minha mãe me mostrando no jornal o anúncio do segundo filme, que o ator para o papel de Lúcio Malfoy havia sido escolhido.”
O amor que uma geração inteira compartilha pela saga Harry Potter é revelada por números astronômicos: a saga arrecadou US$ 6 bilhões de bilheteria nas adaptações para o cinema, foi criado um parque temático em Orlando, milhares de produtos foram licenciados.
Não são poucos os casos de crianças que começaram a ler com Harry Potter. A figura de J.K. Rowling sempre pareceu como um personagem pertencente aos livros da saga. A jovem Elizabeth confessa que ainda não consegue separar a autora da obra. “O autor coloca seu olhar sobre o mundo na obra e, infelizmente, nesse caso, o olhar é preconceituoso e muitas pessoas sofrem com esse preconceito”. Ela ainda afirma que há uma certa hipocrisia envolvendo a situação toda: “Nessa obra em específico, fica ainda mais difícil porque na mesma história supostamente se prega uma equidade e inclusão que não existe”.
2 – Valorizar os pontos positivos
Uma das coisas que mais chamou a atenção quando foi anunciado o elenco da peça de teatro que serviria como sequência para os acontecimentos do sétimo livro da saga foi a escolha de uma atriz negra para dar vida a Hermione. Segundo Rowling, o tom de pele da garota nunca foi explicitado nos livros e qualquer um poderia enxergá-la como bem quisesse. Na época, pré-cancelamento, a autora foi elogiada por incentivar a diversidade e pregar a representatividade em suas produções.
Desde o lançamento do último filme de Harry Potter nos cinemas, J.K. Rowling tem sido uma figura bem ativa nas redes sociais, respondendo a questões dos fãs ou compartilhando curiosidades sobre os seus personagens. A afirmação de que o professor Alvo Dumbledore é homossexual é um dos casos mais emblemáticos. Mesmo sem nenhum indício nos livros ou nos filmes, a autora compartilhou a sexualidade do personagem em sua página no Twitter e disse que a falta de qualquer registro sobre esse ponto na história é simplesmente porque a orientação sexual de cada um não precisa, necessariamente, interferir de modo direto em suas ações.
Quando foi divulgado que novos filmes da saga seriam lançados, e que se passariam alguns anos antes das histórias contadas nos livros originais, os fãs logo se animaram com a possibilidade de ver um jovem Dumbledore representando a comunidade LGBT+ no universo mágico. Os filmes, que tiveram o roteiro assinado pela autora, foram lançados e nada mais do que algumas falas foram ditas sobre o assunto.
A relação entre a saga Harry Potter a diversidade pode até ter sido um exemplo em algum momento do passado, mas para leitores como a Elizabeth, o nível de inclusão não chega nem perto do ideal: “Nos livros, que eu me lembre, não eram declaradas raças a não ser pelos nomes, como as irmãs Patil e a Cho Chang. Nos filmes, eu só me recordo do Dino Thomas. E tanto a Cho quanto o Thomas, coincidentemente, só serviram de interesse amoroso passageiro, uma vez que o Harry se cansa da Cho e a Gina do Dino.”
3 – Encontrar novas vozes
Assim como Elizabeth, o universitário Guilherme Abreu é fã da saga Harry Potter desde criança: “Li todos os livros, vi todos os filmes, sei quase todas as falas de cor. É difícil falar do que mais gosto; eu sou viciado nessa história, toda a magia, todos os personagens, mas principalmente a lição de moral que tem no final do filme explicando sobre as relíquias”.
Para o jovem, que é um homem trans, é difícil lidar com a opinião da autora. “Eu gostava bastante dela, mas após o ocorrido, fiquei muito decepcionado e só sabia pensar como uma escritora de um dos maiores best sellers do mundo consegue ter uma mentalidade tão horrível e preconceituosa”, conta Guilherme. “Me senti chateado e confesso que não a sigo mais, não leio e nem vejo mais nada dela”.
O abandono de antigos fãs da saga tem se tornado frequente. Elizabeth afirma que não tem intenções de continuar consumindo produtos relacionados à história: “Eu sinto que continuar consumindo Harry Potter depois dessas declarações seria dar subsídios pra ela perpetuar o ódio que agora prega”.
Mas a escolha não é unânime! Fãs como o próprio Guilherme optaram por não culpar a narrativa pelas palavras da autora: “Na minha visão, os filmes não têm muito que pagar o pato sobre as declarações dela, não parei de consumir pois sou completamente viciado na saga, mesmo que ao fazer isso eu esteja ‘dando’ dinheiro a uma pessoa que não representa minha comunidade.”
Livros escritos e protagonizados por transexuais ainda não são significativos no mercado editorial e muitas vezes são lançados sem grandes anúncios ou promoções na mídia. Encontrar vozes que genuinamente preguem a diversidade é o caminho para uma cultura pop mais inclusiva e diversa. Livros como “Apenas uma garota” de Meredith Russo; “Todos os pássaros do céu” de Charlie Jane Anders; e “Singular”, de Thati Machado, são exemplos de obras que mereciam estar recebendo a atenção que tanto se gasta na tentativa de cancelar J.K. Rowling.
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