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Cotas raciais: quem pode concorrer como PPI

Não vale apenas alegar que os pais ou avós são negros. Entenda o que dá o direito a concorrer como preto, pardo ou indígena

Por Taís Ilhéu
Atualizado em 1 ago 2022, 11h34 - Publicado em 27 jul 2020, 18h59

Em julho de 2020, em uma decisão histórica, a USP, maior universidade do país, expulsou um aluno por fraude nas cotas étnico-raciais. Ingressante pelo Sisu em 2019, o estudante entrou no curso de Relações Internacionais por meio das cotas PPI (para pretos, pardos e indígenas), alegando não somente ser pardo, como também ter baixa renda (inferior a um salário mínimo e meio por pessoa da família). O conselho do Instituto de Relações Internacionais estudou o caso e chegou à conclusão de que ele não pertencia a nenhum dos grupos. 

De lá para cá, a USP já decidiu pela expulsão de outros seis estudantes que fraudaram as cotas.  A medida não é isolada e acompanha a tendência de outras grandes universidades brasileiras, que começaram a apurar fraudes, especialmente após a adoção do Sisu. Somente em 2020, a Universidade de Brasília (UnB) puniu 25 estudantes, que tiveram créditos zerados, acabaram expulsos ou até mesmo diplomas cassados.

Apesar das punições, acredita-se que o problema seja muito maior do que os casos que chegam até as reitorias das universidades. Segundo o advogado Lucas Módolo, um dos fundadores de um comitê antifraude gerido por estudantes da Faculdade de Direito da USP desde 2018, um formulário criado por eles naquele ano recebeu mil denúncias de possíveis fraudes. 

A expulsão, embora não seja a medida ideal por demorar muito tempo e impedir que a vaga seja transmitida aos estudantes que de fato teriam direito a ela, é importante para dar visibilidade aos casos de fraude. Além disso, ela levanta debates sobre privilégios e racismo na sociedade.

Afinal de contas, por que o primeiro estudante expulso da USP foi considerado fraudador se tinha, segundo declarou, ascendência negra? E os casos de alunos de outras universidades que apresentaram a mesma justificativa e também foram desligados por fraude? Entenda o que dá ou não direito a um estudante a concorrer pela modalidade de cotas PPI no vestibular. 

O que dizem os editais sobre as cotas PPI

Além do manual do candidato, o outro oráculo de todo vestibulando é – ou pelo menos deveria ser – o edital do vestibular. Sim, os editais são extensos, cheios de detalhes e com uma linguagem menos acessível que a do manual, mas é lá que você encontrará com mais detalhes as informações “legais” e regras importantes que regem o processo seletivo. Portanto, é esse documento que você deve consultar antes de qualquer coisa se está em dúvida sobre ter ou não direito a alguma modalidade de cotas no vestibular. No caso das cotas sociais a conversa é mais simples: é preciso ter estudado em escolas públicas durante o Ensino Médio. Se possuir uma renda de até 1,5 salário mínimo por pessoa da família, ainda tem direito a uma outra categoria de cotas que une as duas coisas.  

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Mas quando a conversa são cotas raciais, o debate é mais complexo e delicado. Muitos alunos acusados de fraude se valem do argumento de que são pardos e que possuem ascendência negra (ou seja, que seus pais, avós ou até bisavós são ou eram negros) e que por isso se enquadram no grupo PPI, mesmo que possuam pouquíssimos ou nenhum traço físico que os caracterizaria como tal. Algumas universidades, como a USP, estão prontas para rebater esse tipo de alegação. O edital Sisu-USP deixa bem claro que, para além da autodeclaração no vestibular, os candidatos “deverão possuir traços fenotípicos que os caracterizem como negro, de cor preta ou parda ou, no caso dos indígenas, que não forem registrados civilmente como indígenas, é obrigatória a apresentação da Certidão do registro administrativo expedida pela Funai (Rani)”.

Ou seja, os candidatos devem não apenas ter ascendência, mas também serem “lidos” como negros. Matheus Gregorio Tupiná Silva, estudante de Relações Internacionais na USP e membro do Coletivo Negro Lélia Gonzales, responsável pela denúncia que resultou no caso de expulsão, explica que em um país com a história do Brasil, que passou por um longo período de escravidão e, depois, de branqueamento da sociedade, a miscigenação é muito grande. Por isso, no limite, quase todas as pessoas teriam o direito às cotas raciais por terem algum parente negro na árvore genealógica. Assim, as cotas raciais seriam pouco eficazes para lidar com os problemas impostos pelo racismo. 

O que diz o bom senso

Mas, afinal, que problemas são esses e por que a análise fenotípica resolveria a questão de forma melhor do que a ascendência? Segundo Lucas Módolo, a nossa sociologia ensina que o preconceito racial por aqui é um preconceito “de marca”. Ou seja, as pessoas sofrem racismo por serem lidas como negras, e por isso alguém com pais negros mas vista perante a sociedade como branco não enfrenta as mesmas dificuldade que alguém que é visto como negro pela cor da sua pele e por outras características físicas, como nariz mais largo, lábios grossos e cabelos crespos. 

Por isso, para além da avaliação dos critérios dos editais – já que muitos não são tão precisos como o da USP e apoiam-se apenas na autodeclaração, deixando espaço para contestação dos fraudadores – cabe também o bom senso do candidato em avaliar se possui algumas dessas características físicas que já o fizeram sofrer racismo. Matheus dá alguns exemplos: “Em algum momento guardaram o celular quando te viram passar? Você já foi seguido por segurança em alguma loja? A exclusão desses espaços se deu por racismo e você já perdeu alguma oportunidade por conta dos seus traços fenotípicos?”. 

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Segundo ele, esse tipo de questionamento foi importante quando prestou vestibular. Matheus é uma pessoa negra de pele clara e isso o fez refletir se deveria valer-se das cotas. Por fim, depois de pensar sobre sua trajetória, entendeu que teria, sim, direito a concorrer pela modalidade. Sobre isso, aliás, Módolo afirma que o objetivo da análise fenotípica não é de forma alguma intimidar ou excluir pessoas negras claras, que, por apresentarem, além da cor da pele, outros traços físicos que as tornam vulneráveis ao racismo, também têm seu direito assegurado de concorrer pela modalidade PPI. 

Expulsão e responsabilização

Fraudar cotas raciais pode ter consequências que vão além da expulsão e da impossibilidade de concorrer aos próximos vestibulares na instituição. A estudante de Contabilidade Ana Luisa Calvo Tibério, que atuou por dois anos como representante discente na Comissão de Acompanhamento da Política de Inclusão da USP, órgão oficial que acompanha a política de cotas na universidade, aponta que há ainda uma discussão sobre a possibilidade de o candidato ser processado pela universidade e responder legalmente pela fraude, tendo ao fim que ressarci-la pelo dinheiro que foi investido nele durante o tempo em que estudou lá. Em junho de 2020, o Ministério Público Federal do Rio de Janeiro já havia apontado essa possibilidade em relação aos casos de fraude na UFRJ e na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Em 2017, uma estudante fraudou as cotas raciais e entrou no curso de Direito na Unirio. Depois desse caso, a universidade decidiu criar uma Comissão de Heteroidentificação (em que são avaliados os traços fenotípicos) para verificar se os alunos ingressantes pelas cotas cumpriam os requisitos presentes no edital. A comissão leva esse nome porque a avaliação é baseada na leitura social de outras pessoas sobre a identidade do candidato.

Embora as consequências pareçam graves apenas para os fraudadores, a sociedade também perde muito com a fraude nas cotas raciais, que impedem a superação das desigualdades e a inserção de pessoas negras no ambiente universitário. Hoje, na maioria dos casos, as vagas de quem burlou o sistema de cotas é simplesmente perdida, em função especialmente da demora e da ingerência das universidades em apurar e responsabilizar os culpados. Para o Comitê Antifraude da USP, as listas de espera deveriam ser recuperadas para que o verdadeiro beneficiário pudesse assumir a vaga. Outras opções seriam oferecer a vaga no próximo processo seletivo ou convidar um estudante negro ou indígena de uma universidade privada.

Trocando em miúdos

Ainda tem dúvidas sobre o que dá, afinal, o direito ao estudante de concorrer pela modalidade de cotas PPI? Aí vai um apanhado do que abordamos até aqui e um pequeno manual de prevenção às fraudes!

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A autodeclaração, ou seja, o reconhecimento feito pelo próprio candidato de que ele pertence ao grupo de pretos, pardos ou indígenas é o princípio básico que norteia as cotas PPI de acordo com a Lei de Cotas sancionada em 2012, que tem validade nacional.

As universidades têm, no entanto, a possibilidade de complementar os critérios para a adoção de cotas raciais em seus editais, e muitas delas, como a USP e a UFRGS, o fazem. Elas especificam que, além da autodeclaração, os candidatos precisam apresentar ao menos algumas características fenotípicas próprias de pessoas negras ou pardas, como cabelo crespo, nariz largo ou lábios grossos, para que tenham direito à vaga nessa modalidade. Ou seja, elas precisam ser socialmente lidas como pessoas negras ou pardas.

Mesmo assim, o candidato deve ter em mente que a universidade pode criar posteriormente mecanismos de verificação das cotas, como aconteceu na UnB. Assim, caso seja fraudador pode ter seu diploma cassado. E, é claro, mesmo que uma lei ou norma não o obrigue a isso, cabe o bom senso em refletir se suas características físicas em algum momento já o fizeram sofrer racismo e perder oportunidades. Lembre-se que, ao fraudar as cotas, uma outra pessoa que realmente tinha direito a ela deixa de realizar o sonho de entrar na universidade e perde uma possível chance de transformar sua realidade social.

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