Um homem negro morreu asfixiado depois de ser imobilizado e colocado no porta-malas de uma viatura, na qual policiais jogaram uma bomba de gás lacrimogênio. Uma influenciadora digital registrou uma queixa de racismo depois que o segurança de uma padaria pediu para ela se retirar do local, pois estaria “pedindo dinheiro ou perturbando”. Uma mulher branca pediu que uma mulher negra “tirasse o cabelo de perto dela”, porque poderia “passar alguma doença”.
Esses são apenas alguns dos muitos casos que incitam o debate sobre o racismo estrutural no Brasil. No entanto, apesar das notícias, relatos e pesquisas, ainda há uma crença por parte da população de que não existe racismo no país e que o povo brasileiro vive em uma suposta democracia racial. Em resumo, seria uma realidade na qual todos teriam igualdade nas diferentes esferas da sociedade, independentemente de cor ou etnia.
O conceito democracia racial foi cunhado pelo médico e antropólogo Arthur Ramos, mas é comumente associado ao sociólogo Gilberto Freyre. Isso porque, em sua obra “Casa Grande e Senzala” (1933), Freyre foi um grande propagador da ideia de democracia racial ao defender que, ainda que a colonização tenha sido marcada pela imposição dos valores europeus, a grande miscigenação no Brasil teria contribuído para proporcionar uma relação menos conflituosa entre as raças.
A partir dessa lógica, o autor interpretou o povo brasileiro como sendo pacífico e cordial, que se orgulha e convive com a diversidade de forma harmoniosa. Freyre não negava a violência e o preconceito contra negros no Brasil, mas considerava esses fatores circunstanciais, e não estruturais.
Vale lembrar que, nesse período, o Brasil estava buscando elementos que constituiriam a sua identidade nacional. Então, o discurso de um país miscigenado e harmonioso, onde o convívio era tolerante, serviu como meio de promover essa ideia de coesão e identidade nos anos 1930.
“O problema é que essa teoria desconsidera a condição inicial de exploração entre negros e brancos, que produziu relações desiguais ao longo do tempo. E o passado de abuso, submissão, exploração econômica e imposição cultural não foi completamente superado, portanto, essa ideia acabaria contribuindo para camuflar as desigualdades raciais”, diz Laila Antunes, professora de História do Colégio Rio Branco.
A partir desse “mito da democracia racial” – termo cunhado pelo sociólogo Florestan Fernandes –, foi se construindo uma visão de que não existiria racismo no Brasil. Diferentemente de outros países que institucionalizaram leis segregacionistas (Estados Unidos e África do Sul, por exemplo), em tese, o Brasil não teria adotado práticas discriminatórias. Esse discurso também contribuiu para inibir o debate sobre a situação de exclusão na qual a população negra se encontrava e as suas reivindicações durante muito tempo. Afinal, se negros e brancos vivessem em uma situação de igualdade, não seria necessária uma reparação histórica ou questionamentos sobre a estrutura da sociedade.
O mito da democracia racial no Brasil
“As desigualdades entre brancos e negros no Brasil ainda são enormes. A desigualdade salarial, a desigualdade de oportunidades, o acesso à escolarização de qualidade, a representação política e midiática, as condições de moradia, dentre outros aspectos, revelam a distância para uma efetiva ‘democracia racial’”, explica Renê Araújo, professor de Sociologia do Curso Anglo.
Todo o processo de marginalização do povo negro no pós-abolição, sem medidas de reparação e de inclusão que permitissem àquelas pessoas condições dignas de vida e trabalho, dificultaram o reconhecimento da cidadania aos negros, impossibilitando a ideia de democracia racial. E estudos feitos nas últimas décadas evidenciam a problemática que ronda o mito.
Segundo o último Censo, por exemplo, a população negra configura a maioria do país, totalizando 56,2% na soma entre pretos e pardos. Contudo, um outro levantamento feito a partir dos dados do IBGE mostra que, ainda que o número de pessoas negras no ensino superior tenha crescido quase 400% na última década, esse grupo ainda representa apenas 38,15% do total de matriculados.
Além de estatisticamente terem menos acesso à educação superior, os pretos e pardos ainda estão mais expostos à violência, representando 77% das vítimas de homicídio segundo o Atlas da Violência, disponibilizado pelo IPEA.
As consequências da persistência do mito para a sociedade
Em uma pesquisa da Universidade de São Paulo (USP), realizada em 1988, ano de centenário da abolição, 97% dos entrevistados afirmaram que não tinham preconceito. Porém, 98% desses entrevistados revelaram ter conhecimento de alguém ou alguma situação de discriminação racial.
Sobre o levantamento, a antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz comentou, em uma entrevista à Revista Fapesp, que “a conclusão informal era que todo brasileiro parece se sentir como uma ‘ilha de democracia racial’, cercado de racistas por todos os lados.”
E como é possível enfrentar algo (o racismo) que muitos acreditam não ser existente? Ou que só enxergam o racismo cometido pelos outros, nunca por si? Assim, a ideia da democracia racial contribui para o racismo “disfarçado” presente no Brasil, pois, além de dificultar a compreensão do problema, contribui para a manutenção do mesmo.
“É preciso lembrar que existe um conjunto de práticas que viabilizam a manutenção da desigualdade racial no Brasil, afinal ter tido um passado colonial escravista com a entrada forçada de cerca de 4 milhões de africanos teve impactos que jamais foram reparados. A própria abolição da escravatura em 13 de maio de 1888 não trouxe nenhuma medida de indenização ou plano de equiparação social, deixando uma dívida histórica”, completa a professora do Rio Branco, Laila Antunes.
Os recém libertos além de não possuírem instrução ou propriedade de terras, ainda enfrentaram todo tipo de discriminação que os séculos de escravidão consolidaram no inconsciente coletivo. Ao perpetuar esse legado, a sociedade brasileira manteve as desigualdades.
É possível combater os prejuízos causados pelo mito da democracia social?
Segundo Antunes, há uma série de iniciativas que estão em curso e que podem reduzir os impactos desse mito, como políticas públicas de reparação de equidade como cotas em concursos públicos e universidades, legislação de combate à discriminação, como a lei nº 7.716/89 de criminalização do racismo e a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas por meio da lei 10.639/03.
São iniciativas que têm potencial de gerar grandes impactos a longo prazo, levando em conta que o problema exige uma mudança de mentalidade associada à democratização do acesso a espaços, até então, majoritariamente brancos.
Iniciativas como a representatividade nas artes, como no cinema e na música, por exemplo, também contribuem para uma sociedade mais justa na medida em que vão ao encontro da mudança de percepção sobre a identidade negra. Chimamanda Adichie, escritora nigeriana, em sua palestra TED intitulada “O perigo de uma história única”, fala sobre a importância de conhecer mais sobre África e afro-descendentes como uma forma de combater estereótipos.
“Precisamos promover um debate amplo e permanente sobre a questão racial no Brasil, entender que não há democracia racial em um país cuja desigualdade é grande e explícita. Discutir a questão nas escolas e nas mídias, fazendo com que o assunto esteja presente no debate público e nas instâncias políticas para que políticas públicas possam ser formuladas visando reduzir desigualdades e ampliar a participação e a representação”, diz o professor do Anglo.
Ele reforça que o Brasil precisa compreender a sua história, as características do seu racismo, como o preconceito se manifesta e buscar meios de enfrentá-lo de forma efetiva. Partindo da ideia da pensadora norte-americana Ângela Davis, “não basta não ser racista, precisamos ser antirracista”. E para isso, é necessário romper com o mito da democracia racial.
Para se aprofundar no tema
A integração do negro na sociedade de classes, Florestan Fernandes
Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil, de Kabengele Munanga
O perigo de uma história única, Chimamanda Adichie
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